Contos Breves - Cinco Sentidos - I
Cheira a pão acabado de cozer.
A aurora estival abrandada por uma aragem leve qual sussurro, vai espreguiçando a luz de um novo dia por entre as oliveiras velhas de troncos esventrados por séculos de azeitonas. O sol doirado como a seara de trigo que balança melancolicamente em ondas serenas, surge silenciosamente por detrás da serra imponente e imperturbável. A passarada inicia o frenético corrupio em busca de comida para alimentar as bocas insaciáveis que povoam os ninhos, encravados entre os ramos de um velho sobreiro ou debaixo dos telhados centenários.
O povo, pacato e trabalhador de mãos gravadas de calos e peles rasgadas por anos de fadigas, vai abandonando o mundo caseiro, envolto em paredes de pedra e cal crua e fresca. Cada um marcado pelo seu destino, todos invariavelmente diferentes. É a terra que pretende charrua funda, o trigo que necessita de ceifa, o gado que deseja pasto novo e saboroso.
Por entre as pedras que o astro já aquece, serpenteiam répteis numa perseguição estranha e quantas vezes mortal. À sombra fresca de um imenso carrasco, uma coelha deita-se na cama atapetada de palha seca e macia e pare com à-vontade uma ninhada de láparos pequenos e indefesos. No topo duma parede de um antigo curral, destruída pela intempérie de anos, há um ninho de pintassilgo onde as novas crias traquinas, barulhentas e desatentas, lutam por um naco de comida, trazida pelos pais ciosos. Uma cobra castanha e matreira aguarda a oportunidade para vitimar os pequenos pássaros e assim saciar a fome. Porém pai e mãe numa chilraria constante conseguem corajosamente afugentar a serpente.
O sol cai agora quase a pique. No horizonte longínquo o ar quente cresce da terra como se esta fervesse. Os rodados das carroças que cruzam o casario num movimento repetido, rangem ao peso das cargas. Os cães ladram com vigor. Clamam pelo dono para a habitual carícia a que os habituou. Os gatos preguiçam molemente à sombra duma parede, após uma furtiva e rápida caça aos ratos. A osga, sempre atenta ao mundo que a rodeia, passeia-se no cimo de um marouço de pedras quentes. Uma aranha escala a teia há muito armada. Uma mosca distraída caiu no redil armadilhado e tenta energicamente fugir da renda harmoniosa e malevolamente tecida.
No chão as formigas formam singelos carreiros de ligeiros toques. Mostram-se irrequietas e operárias nunca parando na sua constante azáfama. A galeria subterrânea ainda não está repleta de mantimentos para o Inverno que se aproxima. A brisa fresca da manhã, foi rendida por um abafo quente penoso de respirar. Um burro preso a uma laranjeira de folhas enroladas de tamanha sede, espoja-se no chão tisnado. Patas ferradas para o ar, agita-se freneticamente enquanto contorce o resto do corpo. Tenta assim libertar-se de um número infindável de parasitas que o atentam. Uma nuvem de pó cor de terra eleva-se no ar. Uma vaca socorre-se da pia de pedra, escavada à força de ponteiro para matar a sede que lhe queima as entranhas.
A encosta íngreme, parcamente atapetada por um manto verde de erva, deixa-se invadir pelas borboletas e abelhas que volteiam ao redor das poucas flores ainda viçosas, num bailado tão invulgar quanto belo. Os pardais voam em bandos compactos e apoderam-se sempre que podem da eira, onde ainda brilham ao sol pequenos bagos de trigo e centeio ali em tempo debulhados.
Das chaminés negras e altaneiras exalam fumos de uma refeição bem temperada e regada com vinho acabado de sair do pipo, ainda fervilhante e espumoso. Para quebrar o silêncio, o grilo e a cigarra cantam ao desafio melodias distintas mas harmoniosas. No quintal amplo as galinhas cacarejam em costumada algazarra. Os patos acompanham-nas num grasnar rouco. Apenas o galo consegue impor algum respeito através do seu estridente vozeirão.
Dois cães bulham agora por uma cadela saída. Zaragata sem vítimas, com um vencido, que com a cauda entre as pernas, ganindo baixinho, parte em busca de outra companheira. Na terra de restolho do trigo já ceifado correm como doidos pequenos ratos. Procuram as aberturas dos seus covis, perdidas no meio do imenso chão.
Um rasgão natural e pouco profundo atravessa a aldeia. No meio, um fio de água nascida na serra vem serpenteando por entre pedras cinzentas e roliças. Uma rã coaxa à sombra de enormes freixos que ladeiam as margens da ribeira quase seca. Num silvado enorme, as amoras negras dão sabor às tartes. As papoilas rubras de calor prestam vida e cor à paisagem crestada. Debaixo de um pinheiro manso, semeiam-se pinhas secas e abertas. De quando em vez desprende-se mais uma que cai pesada no chão macio por caruma de muitos anos. O dia caminha para o seu fim, dando oportunidade à noite pacata. Talvez!
Todavia na amoreira gigantesca, os pardais recolhem-se num conclave nocturno. A chilreada é infernal. As abelhas regressam aos enxames e colmeias. Tudo o que foi movimento durante o dia quente, pretende agora o merecido descanso. No ninho, os pais pintassilgos salvaram mais uma vez as crias. Provavelmente no dia seguinte nova batalha surgirá.
A noite cai enfim numa enganadora pacatez. É a vez dos pirilampos darem luz aos caminhos sinuosos. A Lua surge tristonha, tímida. Ouvem-se ralos, cigarras e grilos novamente ao despique. Parece que nada pára ao redor do casario adormecido. Um jumento zurra, ladra um cão logo seguido por outro em resposta. Umcuco ouve-se ao longe, parecendo querer acordar demasiado cedo os corpos fustigados. É a vez da raposa manhosa e sabida descer ao lugarejo. Conhece de sobra as capoeiras, geralmente cerradas. Mas a sorte dá-lhe acesso a uma, onde silenciosamente penetra e rouba. com incrível destreza, uma galinha adormecida.
Pelas janelas de cantarias coloridas, as luzes vão-se extinguindo devagar. Parece que finalmente todo o povo já dorme em paz o sono dos justos.
Cheira a pão acabado de cozer.