Contos Breves - O avô, o pai e o neto - XXXVI
Não gostava de todo da alcunha com que o povo o tinha brindado. De todo. Mas ela correspondia justamente à sua forma de estar na vida. Ernesto de nome, todos o conheciam como o "Despachado". Desde criança, sempre que alguém lhe pedia alguma coisa, ele não parava enquanto não fizesse o que lhe tinha pedido. Já homem, quando os outros começavam a azeitona, já ele colhera a dele. Casou já tarde, mas em pouco mais de dois anos a Zélia pariu três filhos.
- Estou despachado! - Concluía com ar triunfal.
Mais uma razão para o epíteto.
Certa madrugada fria e ventosa de inverno o aldeão aparelhou a burra com albarda, apertou-lhe a cilha, subiu para o lombo do animal e partiu para a feira de S. Sebastião, a três léguas de distância. Havia muitos anos que Ernesto não fazia aquele percurso a pé ou mesmo a cavalo. Geralmente encomendava pelo Tó Pisco as sementes ou alguma alfaia que pretendia. Mas aquele falecera entretanto e ele não confiava em mais ninguém. Assim, era a sua vez de partir em busca das sementes desejadas. Até à estrada velha era fácil, o pior seria depois. Uma quantidade de veredas podiam levá-lo para longe do seu destino. Mas fiou-se na sorte e pôs-se a caminho.
Ao longe o dia parecia querer nascer. A Lua ia aos poucos desaparecendo. Ouvia-se apenas os sons dos cascos do animal a resvalar nas pedras soltas. Um par de horas mais tarde, já a madrugada dera lugar a um sol arrepiado e tímido, quando Ernesto chegou ao fim da estrada velha. A vereda subia agora, até ao cimo da colina. O aldeão duvidou que aquele fosse o caminho certo mas como tinha pressa optou em escalar a serra. No topo deu com uma bifurcação:
- E agora?
O dilema invadia o seu pensamento. Finalmente optou por um dos trilhos e abandonou-se à sorte. A estrada parecia agora descer quando de repente deparou com um ancião, de longa barba branca, vestes rasgadas, chapéu roto e que chorava. As lágrimas caiam-lhe pelo pouco espaço da face e perdiam-se nos tufos de pelos brancos e cinzentos. Sentado numa pedra que dividia a estrada. Ernesto apenas observou:
- Estranho!
Porém nem sabia se a estranheza era de ver ali o homem ou de ele estar a chorar como se fosse uma criança. Aproximou-se devagar e perguntou:
-.Posso ajudá-lo?
O outro olhou-o através dos olhos rasos de lágrimas e exclamou em tom calmo:
- Não obrigado, isto já passa.
Ernesto duvidava e queria saber mais:
- Mas o que lhe aconteceu para estar assim a chorar?
O velho sem pestanejar, respondeu:
- Foi o meu pai que me bateu...
Aquela era a última resposta que Ernesto esperava ouvir. Primeiro engoliu em seco mas por fim lançou nova questão:
- Mas que idade é que o senhor tem?
- Eu? Tenho praí 100 anos!
Aquela resposta era no mínimo imprevisível.
"Está maluco - pensou - ainda por cima estou aqui a dar-lhe conversa e acabo por chegar tarde à feira". Mas a curiosidade mordia-lhe o pensamento:
- E onde está o seu pai?
- Ali ao cimo desse carreiro - e apontou para um caminho entre carrascos e giestas.
Sem dizer mais nada o viajante tocou a burra na direcção do caminho apontado e subiu o estreito trilho até que encontrou outro ancião aparentemente ainda mais velho que o primeiro que sentado no que restava de um pinheiro traçava no chão riscos e mais riscos, com a ponta de um cajado negro e puído.
Quando notou no homem puxando uma burra pela arreata, levantou os olhos e perguntou-lhe:
- Quem é vossemecê?
O camponês nem lhe respondeu lançando-lhe pelo contrário uma questão:
- Você é o pai daquele idoso que encontrei lá em baixo?
- Idoso sou eu... – respondeu de mau modo – Mas sou o pai dele, porquê?
- Porque encontrei-o a chorar...
- Hum! Então não querem lá ver o fedelho? O cachopo foi mal-educado para o avô e ainda por cima chora como se fosse um bebé.
Ernesto nem queria acreditar. Avô? Ainda havia um avô. Então que idade teria este homem? Perguntou-lhe então:
- Mas que idade tem?
- Eu tenho 200 anos.
Impossível haver alguém com aquela idade. Não podia ser. E ainda alguém mais velho. Era claramente impossível. Todavia a tal curiosidade que dera início a tudo, acicatava-o uma vez mais. E aceitando o desafio voltou-se para o ancião e afirmou como adivinhasse:
- E o seu pai está por ali - e apontou um caminho estreito entre moitas.
- Está sim, ao fim desse carreiro está uma casa velha. É dele...
- Então vou até lá.
- Vá, vá... - e continuou a fazer riscos no chão com o velho cajado.
O caminho descia agora por entre a folhagem verde. No chão podiam-se notar tufos de giz-barbeiro com as bagas vermelhas. Num instantes desceu o caminho até à casa. Esta era velha e encontrava-se em muito mau estado. De um lado o telhado desaparecera por completo, do outro havia cobertura mas o frio entrava na mesma.
A porta quase tão velha cornos os anciãos estava escancarada, mas mesmo assim bateu:
- Posso?
De dentro ouviu uma voz trémula que convidou o estranho:
- Entre!
Ernesto foi penetrando na casa pobre. Miserável descreveria melhor o que via. No canto numa lareira rústica ardia um pequeno borralho que mal dava para aquecer as mãos. Ao meio uma mesa e duas cadeiras tão velhas quanto o dono. Não se vislumbrava quaisquer pratos ou talheres que usassem para se alimentarem. Finalmente dirigiu-se ao idoso:
- O senhor é que é o pai daquele ancião que encontrei lá cima?
O homem respirou fundo e respondeu:
- Sou sim senhor. Porquê?
O viajante nem sabia o que dizer ou pensar. Primeiro fora o neto, depois o pai e agora o avô, todos eles muito idosos e duma pobreza imensa.
- O seu neto mandou-lhe um recado - inventou de repente.
- Esse ingrato!
- Ingrato?
O idoso finalmente olhou-o de baixo para cima e devolveu:
- Sabe como é a rapaziada nova, não respeita ninguém! Nem a um velho como eu...
O tema da conversa desviava-se no sentido que Ernesto desejava. Aproveitando a deixa, continuou:
- Que idade tem?
- Eu já nem sei. Pr’aí uns trezentos anos.
O coração do camponês quase que parou. Respirou fundo ganhou coragem e abordou-o com mais questões?
- Como é que chegou a essa idade?
- Foi fácil, nunca me ralei com nada.
- Como assim?
- De Inverno fico deste lado, no verão do lado de lá. E os rapazes sempre vão arranjado algo irmos comendo...
- E assim chegou a essa idade?
- Pois é! Sem nunca me preocupar com nada...
"O despachado" abria a boca num espanto que não sabia medir. Olhava o ancião de cabelo ralo mas longuissíma barba branca. Magro, quase esquelético com a única preocupação de viver o momento. Nada mais contrário à sua propria vida vivida num ápice e sem chama.
Ernesto desculpou-se:
- Tenho de ir...
- Então e o recado do meu neto?
- Ele apenas disse que estava arrependido - mentiu.
- O costume! Fazem o mal e depois arrependem-se...
- Tenho de ir. Até outro dia...
- Até outro dia. E viva devagar o seu dia...
O aldeão partiu finalmente a caminho da feira. Os anciãos haviam desaparecido e a estrada já se encontrava repleta de viajantes. No silêncio dos carreiros palmilhados "Despachado" revia com invulgar emoçãoe estranheza os últimos acontecimentos e meditava... meditava e caminhava... caminhava... devagar... devagar.