Contos Breves - O Banho - XXXV
Amílcar lançou a pedra rente à água. Aquela saltitou uma, duas, três vezes sendo definitivamente engolida pelo charco. Pequenas ondas em círculos perfeitos cresceram e alargaram-se para as margens até desaparecerem na praia de barro escarlate. Um assobio agudo e estridente trouxe-lhe o seu inseparável companheiro. Surgiu do meio do mato de rabo alçado, orelhas espetadas, feliz por rever o jovem. Uma carícia humana desceu ao pêlo sujo e revolto. Devolveu o gesto com uma lambidela terna.
- Onde estavas Festas? Hum... tás com ar de quem já bifou algum coelho, não?
O animal ladrou, como se entendesse o que o rapaz perguntara. Seguiu-o com a natural alegria como que fosse manjar um suculento repasto. Cão de muitas raças mas de um só dono. Amigo fiel.
O catraio acabara de sair da escola. Passou pelo charco e correu a casa, onde devorou um prato de feijões frios e mal cozinhados e saiu rapidamente em busca de outras aventuras. Calcorreava carreiros e trilhos que ninguém mais trilhava, algares profundos onde jamais alguém penetrara, buracos que só ele descobrira e explorara.
Regressou noite cerrada. Na mesa nada havia para comer. Nem pão nem toucinho. Apenas o garrafão do vinho jazia ainda meio cheio. E ele que não gostava de álcool. Desceu as escadas de madeira quase podre até à loja em busca de algo com que enganasse a fome. Na arca talvez achasse esquecido um resto de pão duro. Mas... nem isso.
Fechou a porta da arrecadação atrás de si, chamou o cão e abandonou o lar. Dirigiu-se a casa da avó, onde finalmente ludibriou o rato que lhe trilhava as entranhas. A velha mulher não deixou de comentar em costumado tom áspero, como era seu timbre:
- Estupor de mãe! Nem para o filho é boa... – e abanava a cabeça numa negativa permanente – Só pensa no vinho. Que desgraça!
No pensamento de Amílcar germinava cada vez mais a ideia de não mais voltar a sua casa. Havia três dias que não via a mãe. Esta, dormia tentando inutilmente curar-se do sono etílico ou vadiava pelo povo em busca de uns cobres para alimentar o malfadado vício. O miúdo preferia um reles pardieiro, a assistir ao definhar duma mãe alcoólica.
Pensou primeiro em ficar ali com a avó. Seria uma óptima ideia se a velha senhora não abusasse do varapau para impor as suas vontades. Rezingona, intrometida e coscuvilheira, a idosa ficou fora de uma boa opção.
Entretanto lembrou-se dos livros escolares que largara no seu quarto pequeno e malcheiroso e como temia que aqueles sumissem por troca de um copo de vinho, correu a recolhe-los. O silêncio envolvia a casa suja e desarrumada. Pegou na pequena sacola onde guardava os compêndios velhos e rasgados de tanto uso e retornou à rua em busca de dormida. A noite parecia um abafo. Quente, branda. Deambulou sem destino pelo povoado até que lhe ocorreu a existência duma velha casa abandonada. Fora pertença do Vicente, que morrera havia umas semanas. Sem família, ali estava um lar que servia na perfeição os seus desejos. Correu para lá com emoção. O Festas acompanhava-o a seu lado tal qual a brincadeira.
A porta estava apenas no trinco. Nada havia lá para roubar. Só mesmo pobreza. Penetrou na escuridão que a lua mal conseguia dissipar. Em cima duma mesa repousava um candeeiro meio repleto de petróleo rosado. Após algumas apalpadelas em busca duma caixa de fósforos lá a encontrou numa gaveta. Acendeu assim o luzeiro de vidro. Uma luz amarela e doentia iluminou sofrivelmente o recinto. Cheirava a bafio. A sala estava quase vazia. Uma mesa e uma cadeira eram a única mobília. A lareira negra e fria havia muito que não via lume. No tecto viam-se as telhas que carregavam um velho emadeiramento.
Após reconhecimento da casa Amílcar buscou um lugar onde dormir. Achou uma velha cama num minúsculo quarto. Sacudiu a roupa e recostou-se. Bastaram cinco minutos para adormecer.
No dia seguinte o jovem acordou cedo. Levantou-se num instante e ordenou ao Festas:
- Hoje ficas por tua conta que eu vou se arranjo trabalho na Quinta.
O canito entendeu o dono, ladrou duas vezes e deitou-se com o focinho entre as patas da frente enquanto via o rapaz partir em busca de melhor sorte. Amílcar saiu então em passo rápido. Era sábado sem escola e chegou a casa do José Alva no momento que este escolhia o pessoal. Os homens perfilavam-se no enorme largo que servia de eira em tempo de debulha.
- Tó Maneta, Chico da Horta, Manuel Pornas, ti’ João Mono – e conforme soletrava o nome, apontava o homem, para que não restassem dúvidas.
Quando deu conta do gaiato ao lado dos homens, exclamou:
- Que fazes aqui, rapazola?
- Procuro trabalho... senhor Zé.
- Trabalho? Mas ainda cheiras a cueiros. Vai-te embora que ainda te falta muito para estares aqui.
Mas o rapaz era tenaz. E ali ficou especado, desobedecendo à ordem. O patrão tinha dado dois passos em frente, mas recuou.
- Escuta lá! Tu és surdo?
- Não senhor – respondeu com humildade.
- Então eu não te mandei embora?
- Mandou sim senhor. Mas preciso trabalhar... – acrescentou.
- Ainda és muito gaiato. Devias de estar na escola.
- Hoje ao sábado? Também era melhor. – Devolveu desenvolto e despachado - Mas eu faço qualquer coisa. Recados, vou buscar água, guardo o gado...
O homem estava espantado com a estaleca do miúdo. Acabou por lhe achar graça e perguntou-lhe:
- Nunca contratei ninguém sem saber o seu nome.
- Chamo-me Amílcar e sou filho do falecido Borras e da Bêbada.
Um sorriso aflorou aos lábios do Alva. Recordou-se dos seus tempos de juventude. Tinha também aquela força e empenho. E fora essa tenacidade que havia feito dele um homem abastado e respeitado. Uma palmada no ombro do gaiato e estava contratado.
- Apresenta-te à minha mulher. Diz-lhe que vais da minha parte que ela dá-te com certeza que fazer.
Amílcar não cabia em si de contente. Num ápice galgou o caminho até chegar à beira da patroa. Esta era forte e enorme, quase parecia um gigante para a sua altura, mas tinha um ar afável e simpático. Após as primeiras explicações aquela recebeu o miúdo com um sorriso franco.
- Então vens para o meu serviço?
- Sim senhora – respondeu prontamente.
Augusta Alva mirou o cachopo ao pormenor, de alto a baixo e finalmente sentenciou:
- Pois muito bem, ficas cá! Mas em primeiro lugar, vais-te lavar.
- Lavar?
- Sim, claro!
Não era de todo a melhor das ideias. A água era algo que ele evitava a todo o custo. E agora ali, naquele momento, sem mais nem menos ter de se lavar? Preferia ir embora.
- Vou-me embora – decidiu.
- Vais-te já. Mas porquê?
- Eu não quero água em cima de mim. Não gosto pronto!
A patroa deu uma sonora gargalhada. Depois reparando na cara de espanto do miúdo, enveredou:
- Diz-me uma coisa. Tu és capaz de levar aquele boi que ali vês no lameiro, a qualquer lado, se eu te pedisse?
- Claro!
- E não tens medo?
- Eu não.
- Explica-me lá como é que uma pessoa tem medo da água e não receia um animal como um boi?
Amílcar ficou sem resposta. A vivacidade e a esperteza que sempre o caracterizaram dando origem a rápidas e felizes respostas, tornavam-se agora insuficientes para a questão da patroa. Atrapalhado como jamais se vira, virou as costas à senhora, evitando que ela visse mais do que ele pretendia.
A mulher percebendo o embaraço do rapaz, aproximou-se e carinhosamente afagou-lhe a cabeça.
- Pronto, não chores. Vamos conversar com calma.
Com um gesto brusco e repentino o miúdo libertou-se de mãos femininas. Com a voz ainda embargada, respondeu com aspereza:
- Mas eu não estou a chorar!
- Acredito! – devolveu a patroa com um sorriso - Mas vamos lá falar.
Sem que o jovem respondesse a senhora iniciou uma retórica serena à qual o rapaz não prestou qualquer atenção. O seu olhar vagueava pelos diversos relógios da sala ou pelos quadros e loiças pendurada nas paredes. Preferia ver-se no meio da palha ou da terra; antes o cheiro a bedum dos carneiros ou do estrume das vacas, melhor o cabo da enxada ou da forquilha, tudo era óptimo a ter que se lavar.
A boa senhora apercebeu-se que o catraio estava longe, muito longe, com o olhar vago e dependurado num relógio de madeira. Então ergueu-se e encaminhou-se para a cozinha. Antes ordenou:
- Pronto, não te queres lavar, isso é lá contigo. Não insisto. Mas espera aqui um pouco que eu venho já.
Regressou pouco depois carregando um tabuleiro repleto. Pousou-o em cima da mesa da sala e dele foi retirando pratos e chávenas, bolos e compotas, colheres e facas. Depois virando-se para o rapaz, perguntou:
- És servido?
O miúdo nem queria crer. Nunca na sua pouco vivência observara tamanha fartura. Indeciso e desconfiado porém faminto, atirou:
- Posso comer disso? – e apontou para o prato com pão fresco.
- Claro, até podes comer tudo se te apetecer – respondeu a senhora.
Amílcar levantou-se devagar e dirigiu-se à mesa. Estendeu a mão quando a patroa o chamou à atenção:
- Já reparaste na cor das tuas mãos? Achas que o pão tão branco e fresco, merece ser mexido assim?
O moço olhou para as mãos negras onde nem as unhas se distinguiam dos dedos. Perante o reparo, recuou assumindo uma sentença:
- Não me lavo!
- Sim senhor, então vou levar tudo para dentro. Se quiseres ficas cá a trabalhar, mas enquanto tiveres assim as mãos não comes aqui nada. De acordo?
Os acepipes em cima da mesa, a fome incontrolável, a água fria, a teimosia, tudo baralhado colocava o jovem perfeitamenteem pânico. Umconflito profundo que Amílcar não conseguia gerir dentro de si mesmo. Sim à comida, não à água, talvez a tudo... Um suspiro longo ecoou pela sala. Por fim, rendeu-se:
- E onde é que me lavo?
- Anda comigo – ordenou autoritariamente a patroa sem demora, como se adivinhasse a reacção do pequeno.
O rapazola seguiu a senhora como a uma mãe. Percorreu diversos corredores e salas até chegar ao quintal. Cruzou-se com alguns criados que o olharam desconfiados. Na quintal apenas encontrou um tanque cheio de água. Este elevava-se apenas a um palmo do chão. Era usado muitas vezes para dar de beber ao gado, especialmente vacas e bezerros. Naquele momento, porém a água era limpa e cristalina.
- Lavas-te nessa água que eu vou buscar uma toalha – disse a senhora.
Amílcar baixou-se devagar e olhou à sua volta como se alguém notasse a vergonha que sentia na alma. Não viu ninguém. Lentamente foi tentando enterrar as mãos na água fria. Ao primeiro toque, arrepiou-se e retirou instantaneamente as mãos. Tentou outra vez agora mais fundo. Voltou a encolher os membros e descobriu que a água que escorria pelos dedos pequenos era negra. Mais afoito introduziu-as outra vez e deixou-as mergulhadas um pouco. Distraído com a quase brincadeira, não reparou num criado que se aproximou à socapa. Este a mando da patroa, chegou-se junto do miúdo e quase sem querer deu-lhe um ligeiro toque nas costas.
Catrapuz! Amílcar mergulhou redondo na água do tanque. Aflito logo tentou agarrar-se a algo que o sustivesse á tona. Esbracejava, tentava gritar, engolia água a rodos quando uma mão lhe surgiu na frente e à qual ele se agarrou com força. Puxado para fora, o miúdo nem falava. Olhou em redor e apenas reparou no criado que o fizera cair e que o retirara do tanque.
- Desculpa Amílcar! Vinha tão distraído que nem reparei em ti.
- Sacana! Grunho! – arremessava com ardor. Havia fúria e ódio nos olhos do catraio.
Nesse preciso momento reapareceu a dona da casa que notando o rapaz todo encharcado, logo foi confessando:
- Eu pedi-te para lavares as mãos, não para tomares banho.
Sentindo que era mote de chacota o rapaz acusou:
- Aquele animal atirou-me lá para dentro! – e apontou para o criado que tentava a todo o custo não rir.
- Quem? O Costes? É incapaz de brincar com alguém. Se isso aconteceu foi de certeza sem querer.
- Sem querer o tanas!
- Vamos lá a ver essa linguagem – repreendeu a dona.
- Desculpe!
- Bem e agora?
- Agora espero que esta roupa seque – devolveu despreocupado.
O problema parecia não estar resolvido. Havia que utilizar outro estratagema.
- Eu tenho ali roupa seca, que foi do meu filho. Deve-te servir! Queres?
Roupa nova era algo que o jovem nunca conhecera. Vestia o que alguém por caridade lhe oferecia e pouco mais. Aceitou então, humildemente:
- Eu agradecia...
- Então anda cá para dentro – e num tom de voz autoritário, que ainda não colocara, comunicou – e deixa-te de fanfarronices. Vais ali para dentro e tomas banho ou então vou lá contigo.
O jovem calado, frio, não obstante o dia quente e triste apenas balbuciou:
- Como quiser!
Amílcar entrouem casa. Numpequeno quarto baloiçava do tecto um balde branco afunilado num crivo. A água foi devidamente aquecida e posta no chuveiro. Um alguidar de barro, largo e em tempos quebrado e remendado com fortes gatos, servia de banheira. Uma toalha alva para se limpar e a roupa nova e seca dormiam em cima duma cadeira. O sabão também lá repousava. O miúdo olhou-os com desprezo.
Por fim introduziu-se no quarto devagar, fechou a porta por dentro, despiu-se, puxou a corrente ao lado do chuveiro. E pela primeira vez tomou banho. Sozinho.