Contos Breves - O Primo Alcides - XXXIV
O meu primo, Alcides da Costa Botelho, nasceu tal como eu, numa aldeia longínqua que se ergue no sopé duma serra onde ninguém vai e raramente de lá vem alguém. Vim eu por força do Serviço Militar Obrigatório, e como não apreciava as manhãs encieiradas do Inverno rigoroso, que descia encosta abaixo, nem as madrugadas demasiado tépidas do Verão escaldante, por cá fiquei e veio recentemente o meu primo. Este parente próximo em relações familiares e em amizade – quantas horas havíamos passado, debaixo do velho sobreiro, tentando prever o futuro ainda distante – já ultrapassara a idade dos quarenta. Dizia-me com graça, sempre que nos víamos:
- Isto é uma porra! Assim que os anos entram pelo “cu”… estamos entregues!
E ria-se ruidosamente com gosto mostrando parte da boca onde já faltavam alguns dentes.
Apesar dos anos, permanecia puro e ingénuo que nem uma criança. Solteiro, nele não havia maldade, mentira ou rancor. Tudo era simples e sóbrio. Sério como poucos negociava as suas colheitas, arrancadas à leira com suor e esforço, mas também com carinho e ternura, numa terra que nada pede e tudo oferece, sem lamento ou queixume. A sua imensa força era conhecida e admirada nas aldeias vizinhas. Alto e corpulento, metia respeito a quem se lhe afoitasse em alguma afronta. Certa tarde assisti espantado a uma boa lição que Alcides pregou em três homenzarrões de aldeias vizinhas e que na nossa pretendiam armar zaragata.
Naquele início de tarde, o meu primo arribou à estação vindo da vila mais próxima da aldeia, servida pelo comboio. Uma irmã ajudara-o a escolher a roupa a preceito para visitar a grande cidade. Preparara-lhe também um farnel para a jornada que se sabia longa. Quando abandonou a carruagem olhou para a traseira da composição e exclamou, antes que pudesse cumprimentá-lo:
- Ena que bicho tão grande…
Sorri simplesmente. Após um abraço sincero, peguei na pequena mala e arrastei-o para fora da gare. Tal qual uma criança, o Alcides mirava tudo com a avidez natural da curiosidade humana. E perguntava aqui, questionava ali:
- Qu’é ‘quilo? – e apontava com o dedo o objecto alvo.
- Aquilo é um barco! Daqueles que levam pessoas a passear.
- A passear?
- Sim, a passear pelo mar. Param em diversas cidades…
- E aquilo? – e nem deixava terminar a explicação.
- Uma camioneta da carreira, como aquela que te trouxe à vila. Só que tem dois andares.
Um pouco mais à frente, perante um singular aglomerado de pessoas, exclamou:
- Eia! C’um catrino, tanto pessoal! Assim tanta gente só vi no funeral do Doutor Sabino já lá vão perto de uma dúzia de anos.
Naturalmente, na viagem que fiz entre a estação ferroviária e a pensão onde residia havia alguns anos, o meu primou brindou-me com uma quantidade quase infinita de perguntas. Pago o táxi, entrámos no edifício velho mas razoavelmente bem conservado. Logo calculei que surgiriam novas questões, pois o prédio era servido por elevador. Carreguei no botão ao que uma luz branca me respondeu que aguardasse. Chegou devagar. Abri então as portas e indiquei ao Alcides que entrasse. Este, pouco acostumado a tamanho reboliço e invenções, perguntou:
- Olha lá esta caixa de fofres é o quê?
- Isto é apenas um elevador. Vai-nos levar ao andar que pretendemos sem necessidade de subir as escadas.
Céptico, devolveu ainda:
- E isso aguenta c’o a gente?
- Claro rapaz! Julgas que te enfio numa coisa destas sem saber que é seguro? Isto aguentava com mais dois se fosse preciso.
- Não sei, mas olha que peso mais de sete arrobas…
- Entra e não tenhas receio.
Finalmente decidiu-se e lá chegámos ao patamar. Abri a porta do andar e comuniquei a Alcides:
- Entra, é aqui que moro. Verás como as pessoas são simpáticas e acolhedoras.
Optara desde alguns anos, por residir numa pensão modesta mas asseada, a conselho de um companheiro de trabalho, que também ali morara antes de casar. A proprietária era uma senhora viúva, atarracada e forte, óptima cozinheira e de uma simpatia contagiante. Raramente havia quartos vazios, mas para o meu primo ela esmerara-se e dispensara-lhe por alguns dias um pequeno, permanentemente alugado por um cavalheiro rico e que o utilizava para os encontros secretos com as suas jovens e esbeltas amantes. A Florinda apareceu para nos receber. Vinha a limpar as mãos rechonchudas ao avental, mas carregava na face um sorriso trasbordante de alegria.
- Desculpe-me senhor Fausto mas ando às voltas com umas empadas para o nosso jantar... Ah, mas que belo rapaz é este seu primo! – e aproximando-se espetou dois beijos molhados e sonoros na face morena de Alcides.
O homem apanhado de surpresa olhou para mim com espanto e eu apenas lhe respondi com um encolher de ombros. Porém o camponês sem perceber muito bem que cumprimento fora aquele estendeu a mão volumosa na direcção de estalajadeira. Esta rindo aceitou:
- Olha, então queres que te dê um aperto de mão. Então toma lá.
E estendeu a redonda mão. Alcides recebeu-a e apertou-a como era seu hábito. A pobre da mulher logo soltou um grito retirando o membro.
- Safa! O homem é valente. Será assim tão pujante em tudo? Ou isto, são só mãos…
Piscou-me o olho comprometendo-me na brincadeira, ao que respondi com um sorriso e uma desculpa mal alinhavada:
- Não sei, talvez!
Instalado o primo, logo se combinou a hora de jantar:
- Às oito se fizerem favor! – Solicitou a patroa.
- Cá estaremos.
Saímos em busca da cidade pululante de vida. A tarde parecia chamar por nós, tal era a brandura da véspera. Alcides, não parava. Tudo era novidade, alegria, dúvida.
- Então tu queres-me fazer crer que aquela cachopa é um homem?
- Pois é! E como aquele há muito por aí. É preciso de estar de olho bem atento, senão és enganado.
- Esta vida da cidade é muito complicada... Lá na nossa terra um homem é um homem. Uma mulher é uma mulher. Agora homens vestirem-se de catraias. Onde é que se já viu isto?
- Pois é... – tentava eu desculpar as opções de cada um – O mundo nestes locais vê as coisas de forma diferente dos nossos lados.
Na aldeia tudo surgia realmente muito desigual. Os automóveis – poucos – andavam devagar, sempre sujeitos a que de qualquer lado, surgisse uma besta desencabrestada, um rebanho paciente ou simplesmente um rafeiro em perseguição de algum felino. A única vez que se corria era por altura das festas, nos jogos tradicionais. De outro modo todos levavam a vida numa calmaria quase perfeita.
Palmilhámos quilómetros na cidade. O rio, no entanto, foi o momento alto.
- Ena tanta água! Donde é que ela apareceu?
Mais perguntas que eu respondia como podia e sabia. Falava-lhe de um estuário, do mar, das marés. Alcides escutava atentamente mas bastava um dito ou outra questão para eu perder o fio à meada. Tagarela incurável, em tudo via algo com graça:
- Já visto o boné daquele? Parece de palha de milho... e fica-lhe mal!
Mais à frente:
- Eia que mulher tão gorda! Caberá nas portas?
Outra vez:
- Olha-me a pinta daquele rafeiro...
E eu remendava:
- Aquilo não é um rafeiro. É um cão de raça pura. E dos caros!
Alcides teimava:
- Aqui não há mulas, nem vacas. Só casas, pessoas e carros...
Curioso foi a bizarra atitude do meu primo aldeão, quando achou uma nota de cem no chão. Olhou-a, certificou-se que era dinheiro, mas ao contrário do que calculava, deu-lhe um pontapé e exclamou:
- Para que é que eu quero isto. Vou achar muito mais.
Eu, por minha vez recolhi o numerário do chão e perguntei-lhe:
- Mas tu não queres a nota?
- Não, podes ficar com ela. Hei-de encontrar mais!
- Mas que ideia é essa?
- Foi assim que me disseram lá na aldeia. Quando cá chegasse acharia dinheiro aos pontapés na rua!
- Mas não acredites em tudo o que te dizem lá na terra. A maioria deles só vão à vila e é quando há feira. Como podem elas afirmar essas patranhas?
- Eu não sei! Só digo o que me disseram.
Durante um par de dias, o Alcides visitou o que havia de importante para ver. Admirou-se no Zoológico com a bicharada, encantou-se na Ajuda, adorou o Museu de Marinha. Todavia quase ao fim de uma semana, Alcides observou:
- Em breve regresso à terra.
- Já? Ainda há tanto para ver...
- Que haja! Mas quero ir embora breve.
Não teimei. Casmurro, era homem para partir sem nada dizer. A pé ou cavalo ele lá chegaria. Finalmente desejou partir. Conduzi-o pela cidade até á estação, onde me presenteou com um abraço fraterno e sincero, confessando:
- Se a D. Florinda fosse mais nova... – e virou-se repentinamente, talvez para que eu não percebesse como uma lágrima, lhe regava a face queimada.
Abri a boca num pasmo total. Jamais me passaria pela cabeça uma história entre os dois. De súbito um silvo ecoou na gare. O comboio partiu por fim. À janela, o meu primo acenava-me efusivamente. Vi a composição extinguir-se no horizonte de linhas paralelas até não ser mais que um ponto e mais tarde uma lembrança.