Contos Breves - A Viúva - XXXI
- Ai o meu homem… ai o meu homem… - clamou Natália numa estridente gritaria e alvoroço.
Os gritos lancinantes alastraram-se pelo vale de gente sã e pacata, preocupada unicamente com o azeite do lagar e o milho na eira.
A mulher calcorreava em passo apressado o pequeno declive que nascia na frente branca e florida da sua casa e morria na estrada principal poeirenta e irregular. Os tamancos batiam no chão e soavam a castanholas. Os braços envolviam a cabeça como um novelo e as lágrimas caíam a rodos, cara abaixo.
Ao pranto desesperado da Natália acorreram diversas vizinhas, vindas sabe-se lá de onde e alarmadas com tamanha carpideira: a Idalina, a Irene, a Maria Chica
- Que se passa mulher de Deus? – perguntou assustada a Idalina com quem a Natália não falava para mais de quinze anos por causa de uma parvoíce.
- O meu homem… ai o meu homem… - e o alarido quase que a sufocava. A respiração ofegante e o fervor de um coração abalado quase a não deixavam falar.
- Diz-me mulher, o que foi?
A outra apenas balbuciou:
- No palheiro… no palheiro…
As mulheres logo subiram a vereda, entraram pelo portão que deixava antever um quintal bem arranjado e viraram à direita penetrando no estábulo escuro e cheirando a estrume.
O espectáculo que depararam não era de todo agradável. Da viga mestra descia uma corda que abraçava o pescoço de um homem, que ainda baloiçava, qual pêndulo de relógio, marcando a hora da sua própria morte. As bocas abriram-se num espanto desusado e imprevisto. Persignaram-se e ali mesmo rezaram a primeira oração. Ainda não haviam terminado quando chegou o Tó Zé, irmão da viúva e que aos gritos da mana, logo correu em seu auxílio. Perspicaz e desenvolto procurou rapidamente o banco que servira de apoio mortal ao defunto cunhado. Aquele, tombado sobre a palha de milho aguardava em silêncio que o endireitassem. Ao fundo, um jumento castanho ruminava calmamente a palha, admirado com tamanha agitação. O homem endireitou o banco subiu-lhe para cima, segurou no corpo quase imóvel e cortou, com a navalha que sempre o acompanhava, a corda involuntariamente assassina.
O vulto caiu em cima do outro que o estendeu com cuidado no chão de terra e forragem. Ainda estava quente. Desapertou por fim a espia e cerrou os olhos arregalados, para sempre.
No centro da aldeia Natália continuava num inconsolável pranto. Titubeava algumas palavras que não saíam do mesmo sentido:
- O meu homem, o meu Lúcio… e agora o que vai ser de mim?
Quem desconhecia o destino macabro do marido, perguntava com espanto a razão de tamanho pranto:
- O que aconteceu com o teu homem, Natália?
A justificação saia de supetão, qual faca aguçada em coração de marrã, breves momentos antes da matança:
- O meu homem matou-se! Enforcou-se… no palheiro…
- Ai que desgraça tão grande, mulher…
A vergonha, todavia, não era morrer, que isso é destino e fim de qualquer um. O desdouro crescia na forma como acontecera. Uma tristeza!
Natália carpia agora em silêncio e agitava a cabeça numa permanente negação. O pano que trouxera de casa servia momentaneamente de lenço, onde a mulher enxugava as lágrimas sentidas.
Durante toda a manhã e tarde a aldeia agitou-se num raro e incomum afã. Tocou a dobrar. O povo comentava que tal coisa jamais houvera acontecido. O Lúcio matar-se. E justamente enforcado. Só coisa do Diabo. As pessoas chegavam à casa para ver o defunto ainda pendurado mas este jazia por fim num caixão. O senhor Padre esteve renitente em autorizar o corpo na capela pois não admitia que o suicídio fosse obra do Demo, mas sim de um qualquer desvario. Porém Arlinda, a beata, lá fabricou qualquer desculpa e o pároco finalmente aceitou que o féretro permanecesse na igreja.
Lúcio era conhecido, bom companheiro e amigo estimado, tinha alguma família e naturalmente em pouco tempo a capela encheu-se para o velório.
A viúva, de negro vestida, agradecia maquinalmente a quem a abordava. A noite, negra e silenciosa, trouxe mais dor e mais lágrimas.
- Ai o meu homem! Que vai ser de mim! Sem filhos, sem ninguém... – carpia de quando em vez Natália.
Uma mulher mais decidida e corajosa perguntou a meio da madrugada de vela:
- Conta-me lá. Imaginas o que levou o teu marido a cometer tamanho disparate?
- Eu não! Sei lá! São tentações do Demónio!
Mas a outra não se convencia e atacou de novo:
- Notaste alguma coisa estranha, ultimamente?
- Não claro que não!
Respondera rapidamente sem pensar. Porém Natália mentira. A outra não voltou à carga, mas a viúva ficou a matutar. No passado. Recente.
Havia mais ou menos ano e meio, talvez dois, que o marido surgia diferente. Antes, no início de cada semana Lúcio partia levando consigo o rebanho e as saudades. Quando no final da semana regressava, trazia quase sempre dinheiro, apetite e frio de companhia. O dinheiro entregava-o à Natália e esta por sua vez entusiasmava-lhe a gula. Mas à noite deitava-se tarde para que o marido a não incomodasse. Nunca gostara muitos desses temperos. Assim fora, sempre! Até nas núpcias Lúcio teve de aguardar em silêncio e abstinência, antes de saborear a carne fresca e macia da mulher, pois esta apresentou-se de panos e camisa, naquela que seria a noite das descobertas.
Ultimamente o pastor não trazia dinheiro, nem apetite, nem frio. Às questões sempre preocupadas da mulher, desculpava-se que o negócio estava mau, que os outros também se queixavam, havia de aguentar até chegarem melhores dias. Já se socorrera do pé-de-meia escondido no fundo de um baú carunchoso, amealhado durante os anos prósperos.
Natália por entre lágrimas e agradecimentos lembrou-se de como o seu homem andava triste, abatido. Alguma doença porventura. E ela que nunca ligara. Sentia agora o nó apertado na garganta do remorso de não se ter preocupado. E fora por isso que Lúcio se matara. De certeza! Sentindo no fundo a dor verdadeira da ausência do marido, a viúva carpia agora mais lágrimas, num desgosto sincero e arrependido.
Na capela as mulheres rezavam o terço. Os homens, em pequenos aglomerados na rua tagarelavam baixinho não fosse o defunto acordar, contando uns aos outros histórias do falecido em jeito de homenagem póstuma. E ali permaneceram parte deles até que a noite deu lugar ao dia.
O sol espreitou por detrás do monte. Lançou um braço de luz, depois cresceu outro e seguidamente mais outro, até uma nuvem branca esconder a claridade doirada da manhã. A igreja quase deserta, acordou em silêncio. Quando o sacristão veio tocar o sino, chamando assim o povo para a missa, já a grande sala estava repleta de povo de negro vestido.
À hora marcada o padre contrariado deu início às cerimónias fúnebres. Longa homilia, atitudes bruscas de um homem que devia naturalmente ser mais sereno. Por fim lá saiu o funeral com destino ao cemitério branco e silencioso. Quatro homens e mais quatro iam-se revezando nas alças de um pesado caixão castanho.
Natália lá ia caminhando, amparada a uma irmã e uma cunhada. De luto vestida, como seria natural, parecia ter envelhecido mais de dez anos. Junto à campa o pároco proferiu as últimas palavras e autorizou que o corpo descesse finalmente à terra.
À volta todos choravam por um homem bom, amigo da mulher e que estranhamente se suicidara sem razão aparente.
- Ai Lúcio, que me deixaste para sempre… - exclamou Natália num último e gritante suspiro.
Mas à distancia, fora do cemitério e longe dos olhares viperinos de aldeia, uma mulher ainda nova, grávida, segurando na mão uma criança com pouco mais de um ano, ao ouvir os últimos palavras estridentes da viúva, sussurou baixinho:
-Também a nós, também a nós…