Contos Breves - A Briga - XXIX
- Canalha... gatuno...- Gatuno eu? – e espetava o dedo indicador no seu próprio esterno, como ainda duvidasse para quem era dirigida a acusação.
- Sim, tu! Gatuno e aldrabão...
- Pensa bem o que dizes. Olha que eu vou-me a ti...
- Vem, vem. Levas tamanha cachaporrada nesse teu focinho... Dou-te cabo do canasto em menos que nada!
... Foi a gota de água. Envolveram-se os dois numa zaragata, onde tudo valia: varapaus, navalhas, socos e pontapés. Uma trupe de outros homens envolveu a disputa num círculo perfeito. Um fedelho tentou, por entre as pernas dos crescidos, chegar mais de perto do centro onde tudo acontecia.
Frequentemente os dois aldeãos ensarilhavam-se em disputa. O álcool era o grande mobilizador das animosidades. Uns canecos bem bebidos, alguém de propósito para puxar a conversa e estava montado o palco para mais uma briga. E ninguém conseguia separá-los. O Adérito Cruz na sua posição de cabo de esquadra da aldeia acorreu certo dia para apartar os dois contendores, mas mal virou costas, entendendo que tudo se apaziguara, recomeçaram tudo de novo.
E a zanga crescera de coisa comezinha. Justino herdara duma tia muito velha e solteira um pedaço de terra, não muito extenso mas bem situado e amanhado. Contíguo a este chão pegava o do Dinis. Este, sempre mostrara enorme interesse, anualmente renovado perante a dona, em adquirir o naco de fazenda. Convencido que um dia a proprietária cederia ao seu imenso desejo, ainda antes de falecer, enraiveceu-se quando certa manhã, ao toque de dobrar do sino da capela lhe foi dito que a tia do seu amigo havia perecido durante o sono. Contrariado pelo destino não esmoreceu na vontade de adquirir o leirão. Bastava agora, para tanto convencer com palavras e algum dinheiro o herdeiro.
Amigos e companheiros de escola, onde a professora Arlinda era a vítima preferida das suas diabruras, colegas de brincadeiras e outros amanhos, haviam construído uma amizade bem solidificada. Crente na fortaleza e sinceridade desta relação, Dinis aproximou-se do amigo e perguntou-lhe:
- Já vendeste a tua sorte no Chão de Fora?
- Vender? Vender porquê?
- Tu bem sabes que eu sempre quis aquela fazenda. Já viste? Ali colada à minha, tirava-lhe a parede... hum! Ficava um mimo.
A Justino já lhe haviam soprado nos ouvidos que o amigo admitira com as naturais farronfas em que era useiro e vezeiro, que o tal era seu, que pagaria uma ninharia e outras bazófias. Perante tal cenário o herdeiro decidiu que jamais venderia tal propriedade.
- Então porque não me vendes tu a tua?
- A minha? Tás tonto ou quê?
- Por que hás-de ser só tu a comprar? Eu não estou vendedor! De nada!
- Mas eu pago-ta muito bem! Diz quanto queres por ela?
- Nada! Não ta vendo e fim de conversa – observou Justino já realmente exaltado.
- Pois é! Depois admiram-se quando acontecem coisas…
- Escuta cá, Dinis. Isso é uma ameaça?
- Qual quê. Nem por sombras!
Começou assim o primeiro azedume. As duas leiras ficavam na encosta e a que originara a disputa arrumava-se a um nível ligeiramente inferior da do Dinis, todavia mais perto do caminho com melhor asseguia.
Ora certa manhã subia Justino o carreiro para um pequeno talho de terra perto do Pinhal Velho e que contornava a fazenda herdada quando notou que a parede que dividia os dois lotes estava quase toda desmanchada. Preocupado, entrou na propriedade e admirou com alguma raiva o trabalho ali realizado. As pedras atapetavam parte do chão arrasando uma parte da sementeira de aveia que ali lançara. Logo se lembrou da ameaça velada feita pelo Dinis. O sangue ferveu nas veias e logo pensou em pedir reparo do estrago ao seu vizinho. Mas rapidamente calculou que ele recusaria qualquer acusação e assim engendrou uma maneira de se fazer pagar da fajardice.
Com trabalho e coragem começou a carregar cada pedra, cada calhau e atirou-o para dentro do outro terreno. Foram horas e horas de tenacidade e teimosia. Após finalizada a empreitada, sorriu e esperou a resposta. E esta, claro, não tardou.
No dia seguinte, almoçava Justino pacatamente, quando Dinis o chamou da rua. Ao ouvir o seu nome o lavrador levantou-se, tragou uma última golada do vinho que tinha no copo e atendeu finalmente à chamada:
- Chamaste-me Dinis?
O outro entrou a matar:
- Olha lá, que brincadeira foi aquela de me atirares as pedras para dentro daquilo que é meu?
- Espera aí homem. De que estás a falar?
- Da parede?
- Qual parede? – Justino fazia-se de novas.
- A que divide as nossas fazendas.
- Mas eu não vou a esse chão para mais de uma semana. Andei na altura a fazer os terreiros às oliveiras e foi tudo.
- Pois é. A verdade é que o muro está todo desmanchado no que é meu. E só podes ter sido tu a fazer aquilo!
Os timbres de voz cresciam a cada frase e sentindo que algo de grave podia acontecer, Alda mulher de Justino veio sorrateiramente em auxílio, não do marido mas duma amizade ora quase desfeita.
- Eh lá então! Não querem lá ver! Dois homens a portarem-se que nem miúdos da escola. Parem lá com essa conversa!
Justino não estava pelos ajustes e num tom zangado e pouco habitual repreendeu a mulher de forma violenta e malcriada:
- Porra mulher! Deixa-me em paz, que este assunto ainda não mete saias. Vai para dentro à tua vida.
Mas Alda não se atemorizou e replicou na mesma ufania:
- Não mete saias nem mete calças, mete é cueiros…
E deixou-os a ambos. Justino nem sabia o que fazer; de um lado a mulher furibunda com a situação; do outro o Dinis a querer fazer pouco da sua vida. Sensatamente, optou pela companheira e com um jeito à laia de desprezo abandonou a contenda e entrou em casa.
A partir deste dia Justino tomou o outro como inimigo a abater e sempre que podiam zaragateavam. Uns murros, pontapés, de quando em vez lá malhava um cajado, mas regressavam sempre a casa pelo seu próprio pé. Magoavam-se mais na alma que no corpo, de tal forma que até o velho Almeida dizia entre duas puxadas na beata sumida:
- Aquilo é só gente de arranca botão!