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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - Pão e água - XXVII

Estremeceu sobressaltado com o berro. O seu nome ecoou sonoramente pela casa adormecida. Era sempre assim. O pai jamais soubera chamar por quem quer que fosse. Um estrondoso clamor e pronto. Havia que levantar e obedecer.
Ensonado, afastou a velha manta de trapos, vestiu a camisa outrora alva e saiu em busca do antecessor. Achou-o no pátio aparelhando as duas burras com diversos talegos de milho. A alvorada ainda vinha longe mas a jornada pretendia-se madrugadora.
- Pegas nelas e vais ao João do Pão... – ordenou o pai brusca e secamente, sem outras palavras ou qualquer cumprimento.
Lá se ia a combinação com o amigo Tavares para montar armadilhas nas Pias do Forno de Cima.
- Sabes o caminho? – perguntou abruptamente.
- Sei sim, meu pai – respondeu com a deferência que não sentia.
- Ficas lá à espera. Não vens sem a farinha! – Advertiu.
Na última viagem ao moleiro ficara por lá três dias. Agora poderia suceder o mesmo. Bastaria para tanto não haver vento. E desta vez nem uma bucha na sacola para matar a fome. Ainda assim foi ao poço e trouxe de lá uma infusa cheia de água fresca e pura. Um pedaço de cortiça vedou e boca evitando fugas durante a caminhada.
Pôs-se a caminho. Os pés negros e sujos pisavam terra e pedras num passo comedido. E nem lhe doíam tal era o tamanho dos calos. Poupava assim os sapatos para o baile do sábado seguinte. Ao longe uma luz ténue surgia, como de um guia se tratasse. A alvorada dera lugar à noite calma. Já despontara o sol havia muito quando parou pela primeira vez. Olhou a aldeia cravada no fundo de um vale rasgado pela natureza e pareceu-lhe tão minúscula. Pequenos pontos brancos salpicavam a paisagem atapetada de diversos tons de esperança. Nas encostas serranas o verde escuro e inquieto, das copas dos pinheiros predominava sobre a restante paisagem. E a paz que dali de desfrutava? Escutavam-se facilmente os sons da natureza: o ribeiro serpenteando por entre pequenas pedras em límpidos e constantes marejares; o trinar dos rouxinóis e dos melros num despique imperdível; as correrias desenfreadas de uma lebre em busca da toca salvadora.
As burras palmilhavam os estreitos caminhos, devagar. De quando em vez tendiam a encostar-se às paredes que delimitavam as fazendas amanhadas, tentando aliviar-se do peso. Mas Carlos já conhecia bem as manhas dos animais e logo que percebia algum aproximar dos muros, o jovem retirava-lhes a vontade com uma chibatada forte. Todavia naquela manhã uma delas teimava em atrasar a viagem.
Faltava apenas um légua, quando a besta fugindo por breves instantes aos olhos atentos do rapaz, acabou por rasgar um dos sacos despejando todo o conteúdo no chão. Parecia um silvo a primeira queda do milho. Perante tal cenário o moço parou enquanto amaldiçoava a sorte. No seu bolso moravam sempre pequenos atavios que ele usou para remendar o rasgão no talego. Depois apanhou o milho espalhado e reencheu o saco. Um trabalho moroso e aborrecido.
Retomou o caminho e um par de horas mais tarde achou finalmente o João do Pão. O moleiro era um homem já entrado na idade, magro, de pele seca e longa barba branca. Na boca podia-se notar apenas um incisivo. As velas, ufaneiras pareciam enormes leques, prontas a sacudir o mundo. O som sibilante do movimento rotativo ecoava pela encosta que se espraiava na frente do frondoso moinho..
Quando Carlos se aproximou, o velho João aparava um naco de broa, com uma navalha mal amolada. Distraidamente lançou a apara para o parapeito da pequena janela, embutida na grossa parede do moinho. Olhou o jovem e conhecendo-o logo exclamou:
- Olha quem cá está? O Carlitos...
O jovem esboçou um sorriso. Depois perguntou:
- Posso descarregar as burras?
- Claro rapaz. Traz cá os sacos.
Os talegos foram carregados para dentro onde o moleiro ultimava uma moagem:
- Põe aí em cima – ordenou.
O jovem obedeceu.
A manhã tornara-se numa tarde, solarenga e fresca. Um vento constante soprava nos panos fortes, fazendo-os rodopiar, qual roleta na feira de S. Sebastião, numa corrida sem fim. A hora de almoço há muito que havia passado e Carlos ainda não comera nada durante todo o dia. A fome revolvia-lhe o estômago, qual mar em dia de tormenta. Um olhar fugiu para o parapeito da janela, onde o velho João colocava as aparas duras de broa. Reentrou no moinho onde o mestre pesava os talegos antes de lhes retirar a maquia e perguntou-lhe:
- Tio João... aquele pão – hesitou.
- Que foi rapaz?
- O pão que está na janela é seu? – perguntou como não soubesse de antemão a resposta.
- Foi! Agora é da passarada que de vez em quando vai lá depenicar umas côdeas.
- Posso... posso ficar com umas quantas?
- Podes, podes! Mas olha que estão muito rijas – avisou admirado com a solicitação. Seria que o jovem pretendia comer aquelas nacos de pão de milho?
- Não importa! Bem-haja – agradeceu o rapaz com sinceridade.
De seguida foi à janela e rapou de todas as aparas de broa que lá encontrou. Os pássaros tinham mais onde comer. Ele não! Sentou-se numa meia mó partida e gasta pelo uso e comeu como de um belo manjar se tratasse. A seu lado encostou a infusa donde beberricava água fresca de quando em vez. Algum pão estava naturalmente muito duro, pelo sol e vento, mas ainda assim não escapou ao apetite voraz de Carlos.
Da soleira da porta o velho João de braços cruzados, mirou aquele jovem e recordou-se dos tempos de juventude e em que qualquer coisa lhe servia para matar a maldita fome. Outros tempos! Tempos de penúria e descrença. De muita fome e tristeza. De trabalho e mais trabalho. Mas aquele rapaz vivia naquele presente momento, outros tempos... também! Míngua, revolta, compaixão e raiva. Tudo num só instante. Notava-se no seu olhar. Como ele, João, conhecia de sobra esses sentimentos. Anos a carpir mágoas de barriga vazia... Esboçou ternamente um sorriso que mais parecia uma lágrima...
- Pão e água... – comentou finalmente em surdina para os seus botões.

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