Contos Breves - A Porta aberta - XXVI
A tempestade descia a encosta em torrentes de chuva e vento. Em meses de invernia era frequente a rudeza dos temporais, com a água a escorrer em verdadeiros ribeiros ladeira abaixo, pelas canadas de terra vermelha e negra. Todavia naquele ano a intempérie parecia querer tudo levar na sua frente. Os inhames fustigados pelos aguaceiros fortes quase quebravam nas suas folhas largas e côncavas. O vento no seu rugir frenético rasgava as searas de milho com violência. Finalmente crescia da costa, logo a seguir ao caminho de terra batida, o clamor forte e impetuoso do mar sovando as rochas silenciosas e frias. O síbilo dos imprevisíveis refolgadouros – o Felix Maqueiro, mais conhecido pelo Pé Grande, desapareceu em dia de pesca, ao cair num desses buracos que a natureza criara, quiçá para sua própria defesa - ouvia-se agora mais longe. O mar penetrava pelas entranhas de lava, outrora incandescente, e saía em jactos que se erguiam no ar, quais foguetes em dia de festa do Divino Espírito Santo.</p>Na pequena bacia da aldeia piscatória, as barcas e as traineiras elevavam-se e desciam num bailado invulgar, ao sabor das vagas que morriam com estrondo nas muralhas negras. Os grossos cabos que agarravam as frágeis embarcações a terra, quase cediam à imensa força das águas oceânicas As mesmas águas que em dias menos agitados, enchiam por completo os barcos de bom peixe. Uma alegria, quando assim era! A prata do mar, saltava ainda parecendo querer-se mostrar. Mas a faina rendia geralmente pouco dinheiro. A maior parte das vezes, após noite e dia de mar sempre em sobressalto, cabazes repletos, mal dava para pagar a conta fiada na taberna havia semanas.
Os sucessivos relâmpagos iluminavam o fim de tarde tenebroso e escuro. O gado habituado às tempestades repousava na encosta, repleta de erva verde, indiferente ao mau tempo. Uma ou outra vaca mugia como que dando sinal da sua existência aos deuses das tormentas. Mas estes continuavam impiedosos ou desatentos, tanta era a chuva e vento.
Em casa de Américo Bailinho, a família preparava-se para comer: inhame frito em banha, linguiça e milho cozido, tudo acompanhado de broa e vinho, muito vinho. As luzes das velas, iluminavam pobremente a acanhada sala.
Ele, camponês mas também baleeiro, era um homem forte e corajoso. Na barca Santa Rita, onde era trancador, ganhara boa fama e indiscutível prestígio. Jamais cachalote algum escapara à ponta afiada e certeira do seu mortífero arpão, que ele guardava com devotada paixão por entre os seus pertences. O medo, esse sentimento tão contraditório que criva os bravos dos outros, vivia todavia permanentemente consigo. Não receava morrer na luta quase titânica contra um animal de cinquenta toneladas, temia apenas a falta do pão na família. E por isso cuidava-se. E orava...
Lá fora o mau tempo engolia a noite já escura. As portadas há muito cerradas, desde que Efigénia olhara o cimo da serra e previra...
- Temos trovoada! E da grossa!
... vibravam ao sabor do vento. E as grossas bátegas de água trazidas por Eolo, fustigavam as janelas com invulgar violência.
Após a oração dita com a solenidade que a situação obrigava, todos se lançaram ao jantar. Entretanto a tormenta parecia querer redobrar de intensidade.
- Diabo de temporal este! – comentou Américo com raro azedume.
- Deixa lá homem! Amanhã é outro dia e o mau tempo não dura sempre. Há que ter paciência - apaziguou a Efigénia.
- Três dias, já lá vão três dias, que não saio de casa. Diabo de temporal! – repetiu o marido.
E o homem foi comendo e bebendo. Que mais haveria a fazer?
De súbito e após uma rabanada de vento mais forte, o acesso à rua escancarou-se com estrondo, permitindo que a chuva e o vento compartilhassem a casa numa confraria pouco usual. Num salto Américo agarrou a búrdia.
- Diabo de porta, agora é que havia de se abrir.
Mas ao tentar encerrá-la não o conseguiu. Um poder estranho parecia surgir de fora e empurrava-a para dentro. Nem era o ímpeto do vendaval, que esse por breves instantes parecia esmorecer ligeiramente. O baleeiro uma vez mais em esforço empurrou a porta tal qual fosse lançar um arpão. Mas sem êxito.
- Mas que Diabo porque não se cerra ela? – resmungou.
As crianças tremiam agora. Crentes, viam naquele bizarro fenómeno como algo vindo do Além. A mulher, todavia serena e confiante, ajudava os filhos.
- Não tenhais medo. Isto é apenas o vento! O pai vai já resolver o assunto... Sabem como ele é forte – descansava.
Mas estranhamente aquela não se deixava mover. E Américo usava de toda a sua pujança para a contrariar. Enfim, em vão.
- Diabo de porta! Não se quer fechar! Tal coisa nunca me aconteceu! – admitia numa respiração já ofegante.
Por fim a mulher, sofrida por horas perdidas na incerteza se o homem regressava ou não de mais uma faina à baleia, ergueu-se calmamente, dirigiu-se à entrada teimosa e com a serenidade de quem ama o Divino, epilogou aquela sem esforço, terminando ali uma luta imperceptível. Espantado com o último gesto da mulher, Américo remeteu-se a um silêncio triste e vencido.
- Homem de Deus, pensa bem! Nunca ponhas o Diabo à frente das coisas... Sabe-se lá do que ele é capaz! – Proferiu a companheira à guisa de uma sentença serena.
Na mesa pobre e humilde, reinava agora a calma, acabando todos o jantar já frio, em paz e sossego.