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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

A versão do Óscar

Vocês podem não acreditar, mas a minha Flauzina era a galinha mais bonita lá da quinta. Quando a vi pela primeira vez, já era assim um rapaz meio espigado, dono de um belo vozeirão e com muita saída entre as cachopas que por ali cirandavam. Só que naquela manhã quando a vi… ui… foi paixão à primeira vista.

Só que ela não estava muito virada cá para o jovem. Preferia um galo pedrês, muito mais velho, com uma crista vermelha enorme e aquela imensa penugem, que quase nos assustava quando abria as asas. Estranhamente desapareceu de um dia para o outro, sem deixar rasto e nunca mais lhe pusemos a vista em cima.

Todos os dias e mais do que uma vez, uma velhota aparecia com sacos e alguidares velhos para distribuir comida por todos nós. Ali naquele enorme espaço vedado por uma rede alta e muito fina, conviviam sem qualquer problema nem bravatas coelhos, patos, gansos, perús, galos e galinhas. De vez em quando aparecia um gato matreiro na esperança de filar algum pinto, mas os gansos davam logo sinal e nunca nenhum felino conseguiu levar algo dali. Noutras noites havia muito reboliço tudo por causa de uma raposa manhosa que por ali também tentava a sua sorte. Os gansos eram os primeiros a dar sinal para logo acorrerem os cães, fazendo com que a raposa fugisse sem ceia.

O estranho foi que um dia a velhota humana deixou de aparecer. E não fosse um vendaval por esses dias ainda lá estaríamos presos ou se calhar mortos. Pois foi… o temporal de chuva e vento foi tão grande que a rede caiu fazendo com que todos fugíssemos da quinta.

Ora nesse dia procurei na confusão da partida a Flauzina e perguntei-lhe se queria ir comigo ao que ela respondeu que sim.

Cada um dos outros partiu para seu lado completamente à nora. Vale a pena confessar que eu a princípio também não sabia se havia de ficar ou partir, mas depois com o sim da Flauzina, pusemo-nos a andar. Só que não segui pelos caminhos mais abertos, escolhendo preferencialmente trilhos fechados com erva alta e também com a probabilidade de encontrar melhor comida.

Quando chegava o fim do dia arranjávamos um lugar mais abrigado e ali dormíamos. De madrugada voltámos ao caminho. Até que ao fim de uns dias encontrei um velho barracão.

Estava a chover, mas lá dentro estava tudo seco. Óptimo local para já… pensei eu! Depois logo se veria, que a vida, mesmo para nós galináceos, é mesmo assim. Quase sem saber e de um momento para o outro perdemos a cabeça…

Andámos por ali uns dias com muita comida e ninguém para nos aborrecer, nem sequer um gato ou um cão esfaimado… Nada! Local perfeito… ainda por cima a Flauzina começou a dar sinais de começar a chocar os ovos.

Todas as manhãs subia para cima de uma madeiras que estavam da parte de fora e toca a acordar a malta em redor. Não sei se acordei algum humano, mas a verdade é que um dia surgiu um homem meio jovem e que devagar entrou no barracão. Depois começou a retirar as caixas onde se acoitava a Flauzina.

Ora foi nesse instante, tentando defender a mãe dos meus ovos que saltei para a cabeça do humano e ferrei-lhe umas bicadas valentes. O tipo bem que me tentava apanhar, mas eu consegui escapar sempre. Finalmente e após muitas bicadas acabou por sair do barracão. Ainda me disse qualquer coisa, todavia eu só desejava é que ele se fosse embora.

Só que, pasmem-se, passado um bom par de horas ele reapareceu com comida e água que colocou à frente de Flauzina que estava cheiinha de fome. Eu vi aquilo á distância e percebi que o jovem tinha bons instintos.

O que aconteceu a seguir explica-se bem… O humano todos os dias vinha ali trazer comida e água. Mas eu jamais apareci não fosse ele cravar-me as unhas.

Mas um dia os meus pintos saíram da casca e para além da mãe viram-no a ele. E nem fugiam já que eles tomaram o humano como um deles.

Certa manhã ele chegou, deixou os mantimentos e ficou a li a olhar os pequerruchos a devorarem a comida que trouxera. Foi por isso que acabei por fazer um ínfimo vôo e aterrei no ombro dele.

O humano nem se mexeu e parece ter gostado.

O galo

Deitou-se a desoras! Algo que vinha fazendo havia algumas semanas. A morte recente do seu avô, no fundo o homem que o criara e educara após a morte prematura dos seus pais num trágico acidente de viação, deixara-lhe profundas marcas.

Afogava assim as mágoas em inúmeras garrafas de cerveja ou outras bebidas. Depois já alcoolizado pedia um táxi e atirava-se para a cama tal como vinha.

Naquela manhã, porém, acordou mais cedo do que imaginaria. Um cantar de um galo despertara-o. Num segundo pensou que estava novamente na velha aldeia com o avô, onde os animais eram bem madrugadores. Olhou em redor e pela desarrumação do quarto percebeu que estava em casa, na cidade onde nascera e agora aterrara contra vontade.

Entretanto o galaró não se calava e Nuno pretendeu saber onde estaria tal animal já que estava no meio de uma cidade. No fundo a sua relação com a vida rústica ainda não se diluíra no álcool bebido.

Ergueu-se a custo da cama e foi à casa-de-banho enfiar a cabeça debaixo da torneira de água fria. Já reactivo vestiu uma roupa informal pegou nas chaves de casa e foi em busca do cantar do galo.

Na rua curiosamente deixou de o ouvir e andou para trás e para à frente para tentar perceber de onde viria aquele vozeirão. Ouvi-o de novo e palpitou que estivesse na rua debaixo da sua e para lá se encaminhou. À entrada do arruamento um sinal indicava uma rua sem saída. À esquina uma moradia ainda em construção para logo pegado com esta, um longo terreno cheio de erva verde que em alguns locais chegava à altura de um homem. Percebeu então que a parte de trás do baldio dava para as traseiras do prédio onde vivia, daí ouvi-lo bem.

Ao fundo do terreno erguia-se, o que parecia ser, um barracão. Com a vegetação tal alta logo assumiu que se desejasse ali entrar teria de se munir de ferramentas apropriadas.

Regressou a casa, desceu à garagem onde em tempos existira um carro e buscou uma enxada rasa, um serrote e uma tesoura de podar. Retornou ao terreno e com saber foi raspando o chão devagar de forma a criar um pequeno carreiro que o levasse ao barracão. Curioso é que o galo deixara de se ouvir. Quiçá com medo da estranha visita e para não denunciar o seu poiso.

Lentamente Nuno desbravou o terreno até que chegou à entrada do velho barracão. Sem qualquer porta, o telhado ainda assim estava bem montado e provavelmente não choveria lá dentro. Estava escuro e Nuno deixou que os olhos se habituassem à escuridão. Depois conseguiu ver uma enorme desarrumação com algumas caixas de madeira, em tempos teriam levado fruta, muitos sacos velhos e algumas alfaias em péssimo estado.

Parou à entrada e esperou o galo, que deveria andar por ali, surgisse. Mas o que escutou foi um cacarejar dolente e quase inaudível.

Devagar, muito devagar o jovem foi-se aproximando do local de onde surgira o barulho e tentou destapar retirando algumas caixas amontoadas. O cacarejar repetiu-se e Nuno percebeu que estava no sítio certo. Outra caixa retirada e logo ali surgiu uma galinha branca cpomo a neve, que parecia estar no choco e voltou a colocar as caixas mais ou menos como estavam.

Eis que no instante seguinte algo voou para cima da sua cabeça e picava-o. O rapaz sabia quem era e tentou, não afugentá-lo, mas segurá-lo. A luta parecia renhida e o galo não dava tréguas. Sentia que o sangue lhe corria pela cara, mas Nuno não desistiu.

Vendo-se por fim em desvantagem o galo voou o que pode para cima de um monte de lixo e como que aguardou o que o rapaz iria fazer. Nuno passou a mão pela cabeça que veio cheia de sangue.

- És valente, Óscar! Safa que me deixaste a cabeça em sangue. Mas acredita que não te quero fazer mal.

A ave parecia entender o que o jovem estava a dizer. Depois esticou a garganta e cantou agitando ao mesmo tempo as asas.

- Espera que eu já te digo o que vou fazer… Fica aí, toma conta da tua gente – e apontou para o sítio onde estava a galinha, continuando – que eu vou buscar comida para vocês.

Pela primeira vez em algumas semanas Nuno sentia o pulsar da vida dentro de si. Voltou a casa, tratou da cabeça e partiu em busca de mantimentos para os bichos.

Quando de braços carregados regressou ao barracão não deu pelo galo, todavia a galinha mantinha-se no choco. Lentamente e como tantas vezes fizera na capoeira do avô estendeu a comida à frente da ave e esta logo principiou a debicar o milho partido. Ao lado uma taça velha com água e um monte de palha que colocou mesmo encostada à ave.

Sentiu-se bem no seu gesto e partiu para regressar no dia seguinte e voltar a dar comida à futura mãe. Uma acção que foi repetindo até perceber que os pintos já haviam nascido.

De todas as vezes que Nuno visitou a galinha sentiu que Óscar estava a espiá-lo. Não percebera onde, mas que estaria perto isso tinha a certeza. Certa vez fez uma amálgama de couves bem migadas, ao que acrescentou sêmeas, milho e pão duro. Depois deitou um pouco de água e finalmente levou tudo até ao barracão.

Os pintos, ao invés da galinha e do galo, aproximavam-se de Nuno sem receio e este deu-lhes aquela comida. E ficou uma vez mais a olhar aquela vida que ajudara a nascer. Para no instante seguinte sentir o ar a agitar-se. Percebeu que seria o Óscar e não se mexeu.

O galo veio então poisar no ombro de Nuno. Bem quieto para não o assustar, o jovem sentiu de forma vibrante o vozeirão do galo a cantar.

E sorriu (havia tanto tempo que não sorria!).

A versão do Jeremias

Acontece-me cada uma que, por vezes, só me apetece auto imolar pelo fogo. O que vos vou relatar foi um evento idiota e jamais deveria ter acontecido e não teve piores consequências porque alguém cuidou ao pensar em mim. De outra forma agora já estaria na barriga de algum estúpido gato e de uma cobra matreira.

Sou um pequeno canário nascido com mais três miúdas numa gaiola, nem sei onde! No entanto nunca me faltou nada: o calor da minha mãe, a animação das manas, comida e água.

Ora desde muito cedo mostrei mais genica que qualquer das minhas irmãs. Mas calculo, depois do que me aconteceu, que elas teriam sido mais inteligentes que eu ou, no mínimo, mais perspicazes.

Por causa da minha hiperactividade a minha mãe um dia avisou-me: tu vais dar-te mal com essa precipitação. Mal sabia ela ou melhor ela sabia, eu é que não!

Cresci e principiei a treinar a minha voz. De tal maneira o fiz e com tanto sucesso que num instante estava noutra casa e noutra gaiola… sozinho. Com tudo do bom e do melhor que até tive direito a uma concha onde treinava e afiava o meu bico. Só vos digo… um luxo de gaiola. É pena ser aquilo mesmo... gaiola!

Cedo percebi que o animal humano é um ser pouco fiável. No entanto há alguns que merecem a nossa atenção e de mim a melhor voz. A dona Olimpia é uma delas, tal como a sua neta Margarida. Uma menina bem curiosa e que fui percebendo ter um cuidado especial com todos os animais.

Por exemplo a Guidinha não gostava nada que estivessa na gaiola. Nada mesmo! E eu, para ser sincero, também gostava pouco. Preferia voar livremente na rua como aqueles safados dos pardais que não cantam nada e são livres, livres!  Bom os pintassilgos também cantam bem e andam lá fora! E bem merecem, sim senhor!

Um destes dias estava eu naquela enorme cozinha quando a avó Olímpia e a neta falaram de mim. Depois tiraram a gaiola do sítio, invadiram a minha casa e apanharam-me. Assim que senti a mão humana mais frouxa, voei dali e saltitei de armário em armário.

Não demorou muito que a janela abrisse. Foi a menina Guida que o fez creio por causa de mim. Bom aquilo era a oportunidade de uma vida: ser livre!

A liberdade é assim aquele desejo que quase todos temos, mas que poucos conseguem! Até porque ser livre, nos animais, não é uma coisa assim fácil! Essencialmente porque todos somos alvos de caçadores. Uns por fome, outros por malvadez.

Estão a imaginar, não é? Eu desejoso de sair da gaiola e a janela completamente escancarada. Pimbas… nem pensei nas consequências, bati a asas e fui pousar num ramito de uma árvore que estava defronte da janela.

Ousara fugir da gaiola e agora seria gozar da tal liberdade que tanto ansiara. Bom, o primeiro passo ou melhor o primeiro vôo seria procurar qualquer coisa para comer, já que agora não haveria mistura ao meu dispor.

Abandonei o ramo, principiei a descer para o chão para apanhar uns grãos quando me deparei com um assanhado gato que estava ali numa briga com um cão. O felino ao ver-me deixou logo a zaragata tentando caçar-me (lembram-se daquela ideia dos caçadores?). Ui… levantei logo o bico e dei às asas para fugir de tal malandro. Escapei por um triz. Ufa!

De súbito escutei a minha mãezinha: tu vais dar-te mal com essa precipitação! É verdade… as mães sabem muito mais que os filhos. Foi neste preciso instante que descobri algo que nunca tivera e que se chama arrependimento! Se eu pudesse voltar atrás…

Pois... não podia e a minha saga ainda agora principiara. Veio então a fome, daquela que nunca tivera. Na mesma altura chegou uma aragem fresca de fim de tarde. Logo ali confessei com as minhas icterícias penas: estou tramado!

Já estávamos no Verão mas a noite era fria. Por aquela altura do dia já todos os meus colegas pássaros estavam recolhidos e eu, que tinha a mania que era mais esperto, voava para trás e para a frente feito barata tonta.

Após muito voar lá encontrei um poleiro vazio num ramo, nem sei de que árvore. Pousei para logo a seguir escutar uma chilreada medonha:

- Sai daí, depressa… esse é o poleiro da Esguia… Foge!

- Quem é a Esguia?

- Essa cobra que está a olhar para ti para te comer.

Num gesto rápido a serpente atirou-se a mim, mas eu… zás… consegui fugir, diga-se com muita sorte.

Pois é, pensei eu, estou livre da gaiola, mas não estou livre de qualquer perigo. Voei de seguida para o meio de muitos colegas que lá se encostaram para me dar lugar e finalmente pude repousar. Esfomeado, triste e cada vez mais convicto que me precipitara em escolher a liberdade sem perceber muito bem onde ela me levaria.

A noite caiu e lá consegui adormecer.

Quando a madrugada chegou senti uma anormal agitação. Os meus companheiros de liberdade partiam em busca provavelmente de comer e beber. Segui-os na esperança de apanhar qualquer coisa.

Foi nesse instante que reparei numa janela aberta e lá dentro uma gaiola… a minha gaiola.

Nem pensei duas vezes. Entrei pela janela dentro introduzi-me na gaiola e procurei que comer. Finalmente a mistura saborosa, aquele ovo migado e a tal concha. Enchi o papo, dormi qualquer coisa e finalmente pus-me a cantar!

Foi nessa altura que Margarida acordou com um sorriso nos lábios. Ai se não fosse ela!

Certo é que a porta da minha gaiola ficou paea sempre aberta.

Donde eu só saía quando vinha a menina Margarida, pousando então na sua mão sem receio nem vergonha!

O canário

Desde muito pequena que os pais de Margarida perceberam que a filha não era como as outras meninas. Enquanto as crianças da idade dela queriam ver desenhos animados e demais distrações, Guidinha preferia ver os bichos que o avô, nas duas ruas abaixo, tinha na enorme horta. Não interessava se eram caracóis (os preferidos!), lesmas, minhocas ou formigas. Adorava também as lagartixas e olhava para as osgas coladas ao tecto do barracão com imensa ternura. Depois os pássaros que ela insistia em tentar dar de comer espalhando sementes pelo chão que pedia aos pais para comprarem.

Certo dia Margarida olhando para o canário, amarelo e excelente cantador, da avó Olímpia perguntou-lhe:

- Vó’, porque é que este passarinho está preso numa gaiola?

- Ó querida este pássaro é um canário. Chamei-lhe Jeremias e canta tãããããão bem. Ora como nasceu numa gaiola, se o deixasse sair iria ter muita dificuldade em se alimentar lá fora e provavelmente morreria muito depressa.

- Mas eu não gosto de ver o passarinho preso.

- Eu percebo-te minha querida, mas pergunto-te: queres deixá-lo voar livremente para apenas viver um dia ou fica aqui connosco cantando lindamente e viverá muito mais tempo? O que preferes?

A menina calou-se, não conseguindo, contudo, evitar uma lágrima. A avó não deixou de reparar naquela pérola de tristeza escorrendo pela face da neta e retirando a gaiola do prego que a segurava, fechou as portas e janelas, sentou-se numa cadeira para finalmente chamar a neta que olhava a rua.

- Guidinha anda cá!

A miúda ainda de olhos tristes aproximou-se da avó. Esta pegou na mão da criança, abriu a grade de mola da gaiola e introduziu a mão infantil no recinto privado do canário. Este estranhando aquela visita saltava assustado de poleiro em poleiro evitando as mãos humanas. Finalmente foi agarrado e retirado da prisão.

- Não apertes muito, querida… Podes magoá-lo.

Mas assim que pode escapar o canário ganhou coragem e fugiu das mãos de Margarida para imensa tristeza da menina.

- Olha vó’… ele fugiu!

- Deixa estar não te preocupes ele volta! Vou deixar a porta aberta e quando tiver fome ou sede voltará à gaiola. Tu vais ver.

A pequenina olhava a ave doirada com a alegria própria de uma criança e corria atrás dela enquanto a ave esvoaçava por cima dos armários. Finalmente a avó avisou-a:

- Temos de o deixar em paz, coitadinho… Não está habituado a voar tanto. Vá deixa-o descansar.

Porém Guidinha tinha outra ideia que não ousou dizer à sua avó. Deixou que esta saísse da enorme cozinha para fazer qualquer coisa e finalmente pode avançar com o seu plano. Assim chegou-se à janela e abriu esta, deixando que o ar fresco da tarde penetrasse na habitação.

Acto contínuo o canário vendo a liberdade à sua frente voou e escapuliu pela janela indo pousar num ramo da cerejeira que crescia defronte. Encantada a criança ficou ali a olhar o belo canário amarelo em total liberdade.

No instante seguinte a avó entrou na cozinha e logo percebeu o que acontecera. Sem ponta de azedume ou tristeza Olímpia chegou-se à menina e observando o canário disse-lhe:

- Pode ser que um dia volte à tua procura, tu que lhe deste a liberdade. Veremos é se ele a sabe usar.

Margarida encostou-se à avó e assumiu:

- Vou levar a gaiola para o meu quarto. Deixo a janela aberta e pode ser que ele venha comer ou beber água…

A velhota não evitou um sorriso desconfiado, mas sem que a neta notasse o seu cepticismo rematou:

- É uma boa ideia Margarida! Verás que de manhã ele estará lá a cantar para ti!

- Vai estar, vó’, vai estar!

A noite chegou e Margarida levou a gaiola para o seu quarto, conforme decidira. Deixou-a aberta e virada para a rua. Depois aconchegou-se na cama e olhou esperançosa a Lua que parecia sorrir para a menina.

Todavia aquela conversa da avó sobre a liberdade deixara-a confusa. E quando a antecessora veio despedir-se da pequena, perguntou-lhe:

- Vó’ porque disseste aquela coisa da liberdade do canário?

A avó paciente sentou-se à beira da cama e tentou esclarecer:

- Sabes Guidinha, a liberdade é uma coisa assim para o complicado já que há muito gente que vive normalmente como nós mas que não é livre… O seu coração está preso a qualquer coisa ou a alguém. Depois há aquelas pessoas que consideram que a liberdade dá-lhe todos os direitos e nenhuns deveres e com isso, normalmente, só arranjam sarilhos. O teu canário, por exemplo, viu a liberdade plena pela janela e por esta saiu. Se calhar a esta hora estará cheio de frio e fome, porque não sabia que a liberdade é também um acto de responsabilidade.

De repente olhou a neta e esta dormia já. Fechou a porta do quarto devagar, mas deixou a janela aberta.

No dia seguinte Margarida acordou com o cantar do Jeremias que dentro da gaiola ia desfiando lindos trinados.

A versão do Léo!

Por muito que me custe assumir a verdade é que a minha vida está por um fio. Falta apenas saber o seu tamanho, que tanto pode ser uma hora, um dia, uma semana ou quem sabe até um mês.

A meu lado está sempre que pode o meu amigo Leonardo. Um rapaz sensível, astuto e amigo do seu amigo. Não sei se sabem quem é… mas posso contar a minha estória com ele. Querem? Então lá vai.

No entanto e para tal devo principiar pelas minhas origens bem humildes já que nasci num barraco velho, a ameaçar ruir. Mas foi o único local que a minha mãe encontrou para me abrigar mais os meus manos.

Na minha ninhada éramos seis e cinco nasceram iguaizinhos à minha mãe, uma lindíssima perdigueira abandonada ou perdida, nunca o saberei, por um caçador humano imbecil ou inconsciente. Daí eu ter sido o cão mais feio o que equivale dizer que rapidamente me fiz à vida neste mundo cheio do animal homem que é um ser muito contraditório. É verdade, pois tanto demonstrou por mim ternura e compaixão, como ódio e repulsa sem que eu tenha contribuído para tal.

O curioso do meu relacionamento com o animal humano é que sempre entendi a sua linguagem vocal, mas mais que tudo conheci sempre a sua reacção através dos odores que exalava e que provavelmente ele nem percebia. Ah pois é… o homem exala cheiros diferentes conquanto as suas sensações. Quando está feliz, contente transmite um cheiro quase adocicado e muito agradável, mas se estiver triste ou zangado desenvolve um odor ácido e desagradável. Mas pior, pior é quando tem medo… Ui aí o animal humano destila um veneno, perante o qual eu demonstrei o meu desagrado.

Andei muito tempo sozinho, fugindo de quem me queria mal, mas aproximei-me sempre de quem se abeirava de mim para me brindar com uma carícia. Eheheheheh! Eram tãããããããão boas aquelas festas.

Sobrevivi porque sempre fui… mais astuto que muitos dos meus companheiros de rua. Não que enganasse alguém, mas em vez de andar rodeado de outros cães preferi estar sozinho.

Certa tarde encontrei um cantinho que não sendo muito quente pelo menos não apanhava chuva. Tinha comido qualquer coisa e adormeci naquele canto tendo como enxerga um pedaço de cartão que por ali estava.

Ao fim de um bom bocado fui acordado por duas fêmeas humanas que se entretinha a falar uma com a outra. Nem imagino o que teriam para dizer, mas pronto acordaram-me obrigando-me a sair dali.

Uma delas segurava uma espécie de aparelho que continha um animal humano pequeno. Passei à beira dele e quase sem querer cheirei-o. O pequeno debitou aquele odor alegre que tão bem conhecia. Sem muito que fazer acabei por ficar ali a brincar com aquela cria de humano.

A verdade é que passado pouco tempo uma das fêmeas afagava-me e pediu-me que fosse com ela. O cheiro era agradável e não me fiz rogado até porque o humano mais pequeno parecia estar muito contente comigo.

Fui bem recebido por todos e acabei por marcar convenientemente o meu território. A fêmea é que parece não ter gostado, mas depressa percebeu o que fizera. Entretanto principiaram a chamar-se de Léo.

Havia na casa outra cria, um pedaço maior a quem chamavam de Maria Ana e um animal humano crescido e barbudo. Todos me aceitaram e trataram bem, como se eu fosse um deles.

O Leonardo cresceu e desenvolveu-se. Principiou a falar, a andar e a fazer muitas outras coisas que o animal homem faz. À noite eu dormia com o pequeno humano na sua cama e sempre percebi que ele adorava a minha companhia.

Um dia levaram-me a um lugar esquisito onde pairava uma mistura de muitos cheiros. Alguns conhecidos como era de outros companheiros, mas havia outros simplesmente horríveis que imaginei serem daqueles peludos ranhosos e ingratos. Porém não vi nenhum…

Nunca mais tive fome e a minha relação com estes humanos era perfeita. Também era verdade que ninguém se aproximava deles sem que eu autorizasse e nunca foi preciso uma daquelas coisas que prendiam outros companheiros meus.

Provavelmente nunca souberam o que foi ser pobre e faminto.

Esta é assim a estória da minha vida. Uma vida que principiou na rua e que me levaria a estes animais humanos. Durante anos cuidei deles, especialmente dos mais pequenos. Agora é Leonardo que todas as noites se deita a meu lado no chão enfiando-se dentro de um saco, já que eu não tenho forças para subir e descer da sua cama.

Logo ou amanhã não sei como estarei, mas aconteça o que acontecer tenho de reconhecer que os humanos têm razão quando dizem que nada acontece por acaso.

O cão

Para Ana Maria a vida era uma caixa de surpresas. Quase sem ter bem noção no que se estava a meter viu-se aos 30 anos com uma menina nos braços. Desejada é certo, mas tornara-se uma aventura criar uma criança que lhe enchia as medidas. Entretanto o pai da menina e seu companheiro desfazia-se para a pequena Maria Ana, agora com cinco anos.

A relação entre ambos nascera serena e muito comprometida sem que alguma vez tivessem pensado em casar. Ana considerava que o papel não traria qualquer incremento à relação. Ele concordou!

Dois anos depois da filha, nasceu Leonardo. Um bebé sem qualquer problema a não ser… lentidão. A verdade é que o pequeno rapaz não se desenvolvia, nem se despachava a andar, a falar, a tornar-se mais independente. Por causa dele Ana Maria acabou por abandonar o trabalho como consultora e entregou-se à maternidade de alma e coração.

Percorreu diferentes hospitais e um sem números de médicos especialistas para perceber a causa daquele atraso do filho. Ou na pior das hipóteses descobrir qual a grave doença de que padeceria Leonardo. Mas a resposta era invariável: a criança não tinha qualquer doença. E daí ninguém entender aquele estado amorfo do miúdo.

Assim todos os dias esta corajosa mãe pegava no carrinho e levava o filho a passear antes de ir buscar a filha à pré-primária. Naquela tarde optou por um caminho diferente quando de repente escutou vindo do outro lado da rua:

- Ana Maria!

Virou-se e percebeu uma amiga que não via há muito tempo. Atravessada a rua a amiga abraçou Ana enquanto dizia:

- Que saudades, miúda! Como estás?

- Oh Gina que alegria em te ver… Eu estou bem. Com dois filhos… - esboçou um sorriso.

- Este é teu…?

- Sim… é o Leonardo… Mas é um calinas… - assumiu meio a rir, meio a sério.

- Então?

- Com quase três anos não fala, não anda, nem come sozinho… Vale saber que não tem doença alguma. É apenas muito preguiçoso! Muito mesmo!

- Olha que coisa estranha.

- Pois é!

A conversa estava boa e ambas ficaram ali no passeio em amena cavaqueira tentando colocar diversos assuntos em dia. As pessoas passavam para cá e para lá e nem ligavam. Mesmo ao lado uma porta dava acesso ao prédio e enrolado no chão dormitava um cão castanho. As vozes femininas do diálogo acabaram por o acordar. Ergueu-se e espreguiçou-se como só os cães sabem fazer. Depois saiu dali e passou defronte das duas amigas e do carrinho com Leonardo. Olhou o menino e sem que a mãe percebesse, tão entretida estava com a conversa, cheirou o petiz.

Que estranhamente reagiu.

Gina deu pela coisa e acabou dizendo:

- Pode ser calinas o teu rapaz, mas gosta de cães!

- Gosta agora!

- Então repara neles!

Naquele instante Ana Maria deu conta de uma quase brincadeira entre o filho e o cachorro. Este andava de um lado para o outro e o menino parecia sorrir e seguia-o com a cabeça, fosse para onde fosse o animal.

A mãe quase chorou perante o que via! Para depois confessar:

- Nunca o vi a fazer isto. Nunca!

A amiga deitou uma acha na fogueira:

- Já sabes o que vais ter que fazer?

- O que é?

- Tens de levar o cão contigo!

- Não posso! Achas? E se o dono aparecer?

- Este? Duvido que tenha dono.

- Como sabes?

- Não sei, mas nem coleira tem. Leva o cão, trata dele e deixa que o Leonardo se relacione com o animal.

- Mas é tão feio…

- Por fora! Mas o teu filho parece gostar dele.

Ana levou o canito para casa para gáudio da filha mais velha para semanas mais tarde o pequeno Leonardo tornar-se uma outra criança já que Leo, o nome com que baptizaram o cão, jamais largara o rapaz e a relação entre ambos era uma coisa quase doentia.

Rapidamente o menino passou a gatinhar e mais depressa a andar, principalmente quando queria apanhar o seu amigo. À noite quando Ana Maria deitava o filho, Leo deitava-se ao lado deste, mas nem Maria Ana nem ninguém tinha ciúmes daquela relação. A necessidade em chamar o animal fez também com que o rapazito desprendesse a língua para mais uma alegria familiar.

Leo tinha a cor do mel no seu pêlo espetado, muito feio, mas afectuoso como poucos.

Quando naquela tarde entrou pela primeira vez na casa de Ana Maria, esta acompanhada da filha e do filho, o cão logo percebeu que aquele seria o seu futuro lar.

Primeiro cheirou todos os lugares e em alguns deles deixou a sua marca menos higiénica, mas dissuasora para outro que viesse. Ana irritou-se primeiro para perceber depois e ao fim de alguns dias havia já uma certa disciplina.

Leonardo é hoje um rapaz quase normal. Uma visita semanal a uma terapeuta da fala e nada mais.

Ana regressou ao seu antigo trabalho, donde muitas vezes teve de sair a correr quando alguém inadvertidamente se metia com Leonardo. Leo era uma presença assídua mesmo no infantário, mas ai de quem tocasse no seu protegido. Aqueles dentes fariam certamente mossa.

Leo está já muito velho. Leonardo sabe disso e decidiu continuar a dormir acompanhado do Leo. Assim é agora o rapaz que se deita no chão, ao lado do idoso cão.

Que ainda cheira o rapaz como o fez na primeira vez!

A versão do Xavier!

A primeira coisa que tenho a dizer é que detesto o animal homem. Retirando algumas honrosas excepções o humano é um bicho em quem não consigo confiar. De todo. Porque cada um pensa de maneira diferente, enquanto nós, os gatos, temos mais ou menos a mesma ideia: comer, dormir e de vez em quando uma festita, mas não muito longa.

A minha memória não me leva à infância, mas recordo-me de ter chegado a esta casa e ser recebido por uma senhora anafada mas simpática, que me fez uma quantidade de festas. Sinceramente gostei do que me fez, mas não foi por isso que sou amiga dela. Pois, nem quero ser!

Reconheço que sou um oportunista! É verdade! E ao invés do que vão por aí dizendo não sou um animal doméstico. Convivo com o homem por puro interesse. Geralmente são as fêmeas humanas que gostam mais de mim ou de nós, que os machos, sinceramente tanto se me dá que seja um ou seja outro, desde que não me maltratem e não me faltem com a comida!

Neste instante estou pachorrentamente sentado nesta parede, meio acordado semi a dormitar e a aguardar que a fêmea gorda que tanto gosta de mim me venha dar de comer. Um acto que faz sempre com alegria e que eu sinceramente nunca agradeço.

Só que há tempos aconteceu-me uma parte que não contava. A verdade é que depois desse estranho episódio a senhora tem muito mais cuidado comigo. Não obstante ser um gato, não sou parvo e aquela janela é uma armadilha.

Vocês não sabem o que aconteceu, pois não? Eu conto.

Um dia apareceu por aqui um humano mais pequeno de óculos graduados escarranchados numas orelhas grandes. A senhora simpática deve ter-lhe dito alguma coisa pois o humano pequeno nunca se aproximou de mim. Passaram muitos dias até que uma manhã o pequeno começou a atirar uns peixinhos maravilhosos ao ar. Obviamente que não deixei fugir nenhum. O pior é que um deles foi atirado pela janela fora que fica aqui bem por cima donde eu estou agora a reviver aqueles bizarros momentos. E eu cego e parvo fui atrás do carapau. Por acaso era um belíssimo pelim!

O que aconteceu a seguir fez-me perder certamente algumas das minhas vidas. Não que me tivesse aleijado, mas quando me vi a voar sem para-quedas, apanhei um susto daqueles e temi pela minha vida. A sério!

Foi de tal forma marcante que ainda hoje acordo sobressaltado com esse acontecimento. O que vale  é que nas descida vertiginosa tive imensa sorte em apanhar uma árvore e acabei por aterrar no seu cocuruto. Sinceramente repito… vi a coisa mal-parada. No meio disto quem ganhou foi um comparsa meu de cor preta que se alambazou com o carapau que me era destinado.

O problema seguinte foi perceber como iria descer da árvore. Espreitei para baixo, enchi-me de coragem felina e calmamente fui descendo. Uns outros comparsas viram-me e como não me conheciam principiaram a miar. Foi a minha sorte porque, de súbito, apareceu um humano que indo buscar uma escada tentou ajudar-me a descer.

Ainda o ameacei quase me assanhei, mas ele não teve medo de mim e rapidamente vi-me enfiado num saco de serapilheira. Uma coisa horrível. Debati-me como pude, mas as minhas unhas nada conseguiram.

Estava eu nesta bravata entre mim, o saco e o humano quando alguém assumiu saber onde eu pertencia pois ouvi:

- É o Xavier o gato da Rosa a cozinheira do segundo andar.

Bem lá foram entregar-me a casa e quando me libertei, corri que nem um doido para o meu lugar, desejoso que ninguém se aproximasse, nem a humana amiga.

O velhaco do humano pequeno ainda andava por lá e só tive vontade de o arranhar todo. Seria bem feito. Sacaninha do humano…

Mas querem saber que não me livrei dele. Passadas uma semanas lá surgiu ele armado em parvo e com um sorriso de profundo gozo.

A verdade é que quando o revi soltei um gemido, quase a pedir socorro à minha amiga humana. Mas tive a sensação que ela percebeu tudo ao contrário. Valeu a sensatez do pequeno humano em nunca se aproximar de mim, pois se o fizesse ficaria certamente bem marcado.

Palavra de gato!

O gato

Há muitos, muitos anos, era ainda eu um terrível gaiato quando conheci uma tia-avó paterna cozinheira de profissão numa família abastada e que vivia num volumoso segundo andar na Avenida de Roma, em Lisboa.

Daquela minha parente lembro-me bem de ser gorda, quase redonda muito próxima de um boneco que uma marca de pneus imortalizou. Tinha uma queda especial para a cozinha de tal maneira que nunca tinha necessidade de provar um prato ou a sopa para saber se estava salgada ou insossa. Bastava para tal passar a mão sapuda pelo vapor e levar ao nariz para perceber como estaria o tempero.

A maioria do tempo a minha tia passava-o entre aquelas quatro paredes forradas a azulejo branco. Quatro paredes não, apenas três já que havia uma que fora substituída por uma enorme marquise. Apenas a um metro do chão estava o que restava da parede... depois para cima uma vitrine imensa.

Quando lá entrei a primeira vez, pela mão dos meus pais, a tia Rosa sorriu naquele seu ar simpático que só os gordos sabem ter e deu-me um bombom de chocolate com uma cereja dentro. Com cuidado desembrulhei devagar para não rasgar a prata que escondia o chocolate e finalmente atirei-me ao acepipe. A prata desdobrei-a depois de forma paciente e tentei alisá-la… para mais tarde a colocar entre as páginas de um livro.

Mas o que a cozinha da tia Rosa tinha de mais interessante era… um gato. Xavier de seu nome. Gordo, lustroso de tão bem tratado, era ainda assim muito pouco simpático. Quando reparei nele, estava sentado num rebordo da parede que sustentava a enorme marquise. Por cima dele abria-se uma janela basculante que a tia mantinha sempre aberta por causa do calor e dos cheiros.

Quando naquela manhã de Domingo vi aquele felino siamês, tentei aproximar-me no para lhe fazer uma festa, ao que a minha tia logo me avisou:

- Não te chegues perto dele, que ele não é puro. Faz de conta que nunca o viste nem que está ali.

Nesse dia não voltei a aproximar-me dele, mas durante as visitas seguintes fui paulatinamente tentando chegar mais perto do bichano. Mas este nunca reagia.

Eu adorava estar ali na cozinha com aquela tia balofa, mas sempre despachada. Foi também ali que percebi que o Xavier era um bicho matreiro e guloso. Tão guloso que aguardava pacientemente que a minha tia tirasse as petingas do frigorífico e assim que ela saía da cozinha para fazer algo, ele assaltava o peixe. Depois regressava ao seu lugar como se nada fosse para a tia mais tarde e depois de fritas as sardinhas pequenas lhe atirar uma, sem sequer perceber do roubo do felino.

Mas a coisa tinha arte circense já que o gato ficava atento e quando tia atirava a sardinha ao ar de propósito, o bichano como tivesse molas nos pés dava um salto apanhando o peixe no ar. Para logo regressar ao seu lugar.

Tal como prometera nunca me aproximei do gato, todavia sentia por ele alguma animosidade, especialmente pela forma como ele enganava a minha tia.

Ora certa manhã de Domingo, dia em fazíamos a visita à tia Rosa, pensei em fazer o gato pagar pela sua matreirice. Assim a tia que comprara “jaquinzinhos” para o nosso almoço, colocou-os na bancada depois de os bem amanhar e temperar. Finalmente perguntou-me:

- Ficas aqui a brincar enquanto vou lá dentro com a tua mãe dar uma “ajeitadela” à casa?

Respondi afirmativamente e preparei a partida. Logo que a tia me deixou sozinho fui à bancada e peguei em meia dúzia dos pequenos carapaus pelins. Xavier atento olhou para mim e quando atirei o primeiro peixe ao ar o gato filou-o com aquela destreza felina. Gostei da brincadeira e atirei outro pelim, desta vez para um lugar diferente. O bichano não se conteve e saltou para apanhar mais um peixe. E mais outro. Outro ainda. Até que o último atirei-o… pela janela de vidro.

A verdade é que o Xavier nunca se apercebera que para lá da janela não havia senão ar… e um chão duro a muitos metros de altura. Por isso atirou-se pela janela tentando apanhar o derradeiro carapau.

Assim que lancei o peixe e vi o Xavier seguir o destino do isco, arrependi-me logo da partida. Não obstante o gato estar sempre na cozinha, não era a minha tia a verdadeira dona do felino, mas sim a dona da casa. Acabara assim de arranjar um sarilho para cima de mim. Pensei ir à casa de banho fugindo à responsabilidade da situação, mas antes pretendi perceber o que teria acontecido ao Xavier.

Peguei num banco que havia por ali, encostei-o à parede subi para cima e espreitei pela janela aberta, a mesma por onde sumira o gato.

Dizem os ingleses que os gatos têm nove vidas, os portugueses dizem que só têm sete, mas com toda a certeza que Xavier deve ter perdido mais que uma quando se viu a voar atrás de um pequeno carapau. Porém a sorte protege os audazes e o animal acabou por aterrar no cimo de uma araucária que crescia desde o pátio da cave até quase ao segundo andar.

Arrumei o banco e fugi para a casa de banho onde fiquei um bom bocado. Depois ouvi vozes diferentes das habituais e arrisquei finalmente sair do meu refúgio. Deparei com um homem que trazia um saco muito irrequieto que percebi ser o gato.

Muitas semanas mais tarde voltei a casa onde a tia Rosa trabalhava e vivia. Na cozinha no local do costume estava Xavier. Quando entrei o gato miou. Mas era miar dolente, estranho quiçá receoso. A minha tia ao perceber o miar do gato disse com alegria:

- Já vi que o Xavier gosta de ti!

Não me manifestei, mas validei que aquele miar do felino não seria, provavelmente, de alegria, mas assemelhava-se, com toda a certeza a uma queixa.

E tinha toda a razão!

 

Nota: esta estória foi inventada e nunca aconteceu e eu não tendo com os gatos a mesma relação que tenho com cães ainda assim seria incapaz de fazer mal a um felino.

Dia Mundial da Poesia - 2025

Um poeta é um opífice

Que talha o ouro com calma

O mesmo será um artífice

Das palavras com alma.

 

A poesia é a luz daqueles

Que vêem na escuridão

Não só as dores deles

Mas tristezas da solidão.

 

A poesia nunca descansa

Apenas baila e apazigua

A dor mais que mansa

De quem vive na Lua.

 

Não serei nunca poeta

Pois escrever mal sei.

A palavra não é meta

Nem rimar a minha lei.

Alice #IV

Parte I

Parte II

Parte III

IV

- Bom dia Dra. Constança! Desculpe a hora tão madrugadora!

Visivelmente contrariada a médica mostrou-se afável e educada.

- Faça o favor de entrar. Provavelmente não quererá falar comigo no átrio de uma escada, pois não?

O inspector limpou os sapatos velhos e mal engraxados no tapete e entrou no apartamento. Um olhar rápido e deu para perceber como a médica era minimalista. Uma televisão de pé alto e dois sofás. Alguns quadros repousavam no chão mas para Constantino nada lhe surgia como estranho.

- Sente-se, se fizer favor!

- Obrigado – e aceitou o convite.

- Diga-me o que se passa agora?

O inspector sacou do bolso um pequeno bloco de notas e foi dizendo:

- Necessito de mais dados da mulher que foi entregar a criança. E antes que se esqueça o melhor mesmo é falar quanto antes. Nestas coisas da investigação tudo se torna importante e quanto mais depressa falarmos mais rapidamente poderemos ter respostas!

- Com certeza! Coloque as questões que eu irei respondendo!

- Ainda se recorda da dita mulher, certo?

- Claro!

- Consegue descrevê-la com pormenor?

- Vou tentar

- Eu vou tomando notas do que for dizendo.

Constança olhou o tecto branco, respirou fundo e principiou:

- Mulher de mais ou menos 30 anos, magra, cabelo sujo e sem incisivos no arco inferior. Tinha um nevus na têmpora esquerda e no pescoço uma tatuagem.

- Uma tatuagem? Que desenho era? Consegue descrevê-lo?

- Era uma estrela… Também vestia um anoraque vermelho com capuz que deixou cair quando entrou com a criança.

- Ora muito bem… já temos dados que não tínhamos antes. Está a ver? Valeu a pena aqui vir! E recorda-se do que trazia calçado?

- Isso é que não sei dizer… Talvez a enfermeira ou o segurança tenha reparado.

- Mas não repararam que eu já perguntei…

O silêncio impôs-se para passados uns segundos Constantino se levantar do sofá e avançar:

- Posso colocar outras questões que me parecem pertinentes?

Era óbvio que o Inspector ferrara o dente na testemunha médica e não estava disposto a larga-la.

- Pergunte – o enfado parecia evidente por parte de Constança.

- Confessou que não via o seu irmão há uns anos, mais precisamente tem ideia?

- Tenho! Ele saiu de casa numa noite de Consoada.

- E sabe porquê?

- Uma normal discussão com o meu pai que sempre pretendeu mandar na vida dos outros… Minha incluída!

- Portanto desde essa noite nunca mais soube nada de Adriano Belchior?

- Não… nada! Isto é até ontem à noite quando ele me apanhou no parque de estacionamento. Mas deixei-o a falar sozinho…

- Quer dizer que não sabe o que ele faz na vida?

- Não! Tanto pode ser um varredor de rua, como um taxista ou um cientista… Seja o que for não sei rigorosamente nada sobre ele.

O Inspector andava pela sala quase vazia para depois acabar por confessar:

- O seu irmão é responsável por uma das maiores empresas de tecnonogia do Mundo…

- Está a brincar…

- Não estou… E o que temo é que ele esteja a ser chantageado para fazer espionagem industrial.

- Ai… que coisa horrível…

- E a minha derradeira pergunta é esta: crê que o seu irmão aceda a esta chantagem?

- Não creio… até porque a Alice já está com ele.

- Tem a certeza?

- Como assim a certeza?

O inspector despejou o ar e continuou:

- O seu irmão não tem filhos dele. A Alice foi adoptada. Mas ao que soube já hoje a menina tinha uma irmã gêmea.

- Ai inspector... Então a Alice que eu tratei pode não ser a filha dele?

- Exactamente.

- Mas e a roupa boa que a criança trazia?

- É o mistério que temos entre mãos!