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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Os Felícios! 12

Resposta a este convite da Ana

Episódio 1

Episódio 2

Episódio 3

Episódio 4

Episódio 5

Episódio 6

Episódio 7

Episódio 8

Episódio 9

Episódio 10

Episódio 11

Eram três e vinte e cinco da madrugada quando um grito soou em toda a casa. Bom na casa, no prédio e nos edifícios contíguos. Houve quem afirmasse que o senhor Cassildo, um brasileiro bem pachola que vivia duas ruas abaixo, também ouvira o grito.

Felícia levanta-se de um salto ao escutar o berro da filha e corre para o quarto. Entra sem bater e encontra Maria Felícia já sentada na cama com as pernas em vê e uma mancha de água que se alastrava lentamente pelos lençóis.

- Está na hora, filha – disse para a rapariga. Depois dirigiu-se ao guarda-fato e retirou de lá um enorme saco que havia preparado para aquele momento.

À entrada do quarto surgiu também Felício que estremunhado perguntava:

- Que se passa? É preciso alguma coisa?

- A tua filha está pronta para dar à luz. Se queres ser útil arranja-me um táxi.

- Táxi a esta hora? Onde vou arranjar um agora?

Felícia responde em tom áspero:

- Que tal o teu? Achas que consegues chegar ao hospital?

O futuro avô dá uma palmada na testa e devolve:

- Tens razão. Vou já buscá-lo.

Antes de sair avisou:

- Quando estiver à porta toco a campainha.

- Tocas nada homem! Acordas toda a gente… Sabes que horas são… Bem bastou já o grito estridente que a tua filha deu. Eu vou descendo com ela devagar. Dará tempo.

Já no carro e quiçá por defeito de profissão, Felício pergunta:

- Para que hospital vamos?

- O que for mais perto… isso pergunta-se?

Todavia o primeiro hospital não aceitou a parturiente por não ter essa especialidade e de lá correram para outro que aceitaram a futura mãe. Nas urgências o médico de serviço perguntou de forma inocente à futura avó:

- O pai da criança?

Encavacada com a questão Felícia acabou por responder, mentindo:

- Está... está em viagem… mas eu fico com ela!

- Não é preciso! Está bem entregue. Vá para casa qu’isto pode demorar. Depois diremos alguma coisa.

- Eu fico aqui à espera.

- Olhe que pode demorar… - insistiu no aviso, o médico.

- Não importa… - naquele momento a porta automática fechou-se à sua frente e a filha desapareceu noutro mundo.

Sentou-se na sala de espera onde já estava Felício dormitando e deu-lhe a mão nervosa. Depois olhou-o e sorriu.

- Vamos ser avós, já viste?

- E de um catraio… - assumiu o táxista.

- Lá estás tu com essa teimosia… Que coisa a tua…

O tempo passou devagar. Encostados um ao outro os velhos Felícios dormitavam quando escutaram:

- Acompanhante de Maria Felícia…

A avó acorda assarapantada, mas levanta-se num ápice e dirige-se à pessoa que a chamara:

- Estou aqui… há novidades, senhor Doutor?

- Há sim! E boas!

- Ai Deus Nosso Senhor me ajude… e a ela também – agradeceu Felícia enquanto se persignava.

- Olhe que bem precisam…

- Ai… mas porque diz isso?

- Porque tem ali dois netos fantásticos. Ou melhor um neto e uma neta!

Felício que se aproximara abraçou a mulher e escutando as derradeiras palavras afirmou vaidoso:

- Eu não disse… amanhã vou preencher a proposta de sócio do Feliciano.

- Então e a Felicidade Maria?

- Vai ser sócia também!

Nesse momento entrou Mário Felício na sala de espera com ar esbaforido e vendo os pais, já nem usa o uotessape e questiona:

- Há novidades, há novidades?

Responde o agora avô:

- És um bi tio!

- Sou o quê?

Avança a mãe:

- A tua irmã teve gêmeos!

- Dois?

- Sim dois... E já chegam, não? - devolve Felícia!

- Então já sei quem é o pai das crianças...

- Quem é, quem é? - Perguntam em uníssono os pais.

- O Cabé que tem uma irmã gêmea... - naquele preciso instante a voz de Mário Felício foi perdendo fulgor, para finalmente acrescentar - que é a minha namorada e também está grávida.

- Ai... - suspira a mãe arregalando os olhos para o marido.

Felício no alto do seu clubismo afirma todo contente:

- Amanhã já vou buscar quatro propostas para sócios.

 

FIM

Uma dúzia...

Faz hoje precisamente 12 anos que abri este espaço apenas com a ideia de desviar para aqui os textos que não tinham, a meu ver, cabimento neste meu blogue.

Actualmente é uma espécie de armazém de escrita intimista e a com qual tento dar mais um passo no caminho da excelência!

Entretanto este ano ousei desbravar caminhos diferentes em termos poéticos. Escrevi imensas quadras em diferentes desgarradas (pena que mais gente não tenha entrado na brincadeira) e mal versejei diversos sonetos.

Inventei uma família atípica e meio desconfigurada para corresponder a um desafio lançado por uma esta bloguer amiga ao mesmo tempo que respondia a outros desafios que em breve verão a luz do dia em forma de livro.

Ao todo foram publicados, neste último ano, somente 67 postais, portanto... coisa pouca...

Em jeito de remate final cabe-me agradecer a todos quantos aqui vieram ler e comentar. A escrita só tem mesmo verdadeiro valor se for lida. Nem que seja apenas por uma só pessoa.

Fiquem bem e a gente lê-se por aí!

"To do list"

Resposta a este desafio da Ana

 

O jovem Ano Novo dormia após uma noite de alegria. Ainda chegou a tempo de alisar as alvas longas barbas do Ano Velho, que para sempre dormia já e por isso não lhe colocou a questão que tanto o atormentava agora que era o Ano mais novo: como é envelhecer em 366 dias?

Uma voz entrou na sua cabeça zoando:

- Tu até tens sorte vives mais um dia que os outros…

- Quem está aí?

A voz respondeu com uma invulgar doçura:

- Estarás a falar de mim?

- Sim esta conversa… eu estou a escutá-la dentro de mim…

Pela primeira vez o Ano Novo teve medo. As mãos suaram, a pele eriçara-se, o coração batera acelerado.

- Não temas que eu não te farei mal. Só quero o teu bem…

O ainda infante Ano Novo acalmou por fim, mas não se sentia ainda descansado e por isso decidiu:

- Vou procurar espalhar todos os dias uma semente de vida recheada de ternura, compaixão e alegria, pelos céus do Universo.

Na manhã seguinte todo o Mundo se admirou com o que caía do céu… Não era neve, nem folhas secas das árvores, nem algodão… apenas singelos laivos de esperança!

Os Felícios! #10

Resposta a este convite da Ana

Episódio 1

Episódio 2

Episódio 3

Episódio 4

Episódio 5

Episódio 6

Episódio 7

Episódio 8

Episódio 9

O ambiente em casa da família Felício não era o melhor, principalmente desde as festas natalícias onde ninguém recebeu o que gostaria de ter recebido.

De tal forma as coisas estavam desconfiguradas que as refeições faziam-se sempre aos pares. Primeiro pai e mãe e mais tarde os filhos. O grupo de uotessape que havia sido criado deixou de ter actividade.

Na véspera do Ano Novo, Maria Felícia e Mário Felício saíram de casa sem sequer se despedirem dos pais. O pai ficou tão furibundo que nunca mais falou aos filhos.

É neste mundo azedo que vamos reencontrar a família Felício com o pai a chegar agora mais tarde porque os tais “uberes” faziam grande concorrência aos taxistas originando que os clientes fossem muito menos. Valiam, ainda assim, algumas avenças previamente contratadas …

Felícia passou a lavar as escadas do prédio abichando com isso algum dinheiro que ajudava nas contas. Entretanto os filhos continuavam a viver lá em casa, mas sem qualquer compromisso financeiro… E como estava tudo de “telhas às avessas” também a roupa dos jovens deixou de ser lavada e passada a ferro. Amontoava-se à porta dos quartos.

Resumindo naquela casa a confusão era generalizada!

Certa noite Felícia escreveu para o marido:

- O jantar está na mesa!

- Vou já, vou só lavar as mãos!

Durante a refeição só se escutava os talheres a bater nos pratos. Mas há muito que era assim… Todavia o peso da ausência dos filhos tornava aquele momento ainda mais triste. Foi a mulher que munindo-se da maior coragem que tinha, tocou no braço do marido, chamando-o à atenção, dizendo:

- Temos de acabar com isto – e apontou para o telemóvel.

- Porquê?

- Porque somos pessoas e não máquinas…

O marido nada disse. Para depois acrescentar:

- E eles? – e fez um jeito com a cabeça apontando para dentro de casa referindo-se aos filhos.

- Eles? Façam o que quiserem. São maiores e vacinados!

Novo estranho silêncio. Entretanto a porta de entrada abriu-se. Felícia olhou o relógio de parede a pilhas, de origem chinesa e estranhou a chegada de qualquer dos filhos àquela hora.

No momento seguinte apareceu na cozinha Maria Felícia com uma cara que parecia ter sido atropelada. Olheiras enormes onde se percebia a maquilhagem toda esborratada, o cabelo desgrenhado e as mãos numa tremedeira parecida a quem sofre de “delirium tremens”.
Admirados com aquele aspecto físico e psicológico os pais levantaram-se rapidamente da mesa e chegando perto da filha perguntaram de viva voz:

- O que passa Maria Felícia?

A jovem sentou-se devagar na cadeira, mas não respondeu. Escondeu a face suja entre as mãos e desatou a chorar.

A mãe foi buscar um copo com água e deu-lhe a beber. Finalmente sentou-se a seu lado e voltou a questionar:

- O que se passa contigo?

A filha ergueu o olhar para a mãe e respondeu:

- Há um novo Felício a caminho!

Primeiro o choque depois a alegria:

- Que bom, querida. Estamos mais ricos…

- Pois dizes tu… - devolveu a filha.

Depois rematou:

- Que telemóvel vou dar eu à criança? Não sei o que fazer!

Bom dia alegria

Dedicado ao Padre J. um amigo de caminhos e de vida no dia do seu aniversário

Alegria pela vida que temos
Pelo sol que vimos nascer.
Alegria pelo que somos
E pelo querer sempre viver.

Alegria pelas flores,
Também pelas incertezas.
Alegria pelas dores
Sinal das nossas tristezas.

Alegria por este Deus
Que nos convida a sermos
Mais que aos meus e teus
A todos... nós amarmos.

Alegria pelo caminho
Que já fiz contigo.
Alegria pelo carinho
De seres real Cristo amigo.

Giz-barbeiro! #3

Resposta a este desafio

Parte 2

Após o demorado almoço decidi apresentar aos meus amigos os restantes animais! Já haviam conhecido as galinhas e os coelhos, mas faltavam aqueles com quem andava diariamente pelas charnecas e lameiros.

Fomos a pé, todos be⁸m agasalhados que o frio por aqui não é para brincadeiras. Por vezes até neva! Estava ainda longe do curral a já escutava o balir triste das ovelhas todo o dia presas.

Os borregos foram obviamente a sensação e os alvos preferidos das miúdas. Ficaram mais tristes quando lhes comuniquei qual o destino provável das crias. Mas eu também tinha de ter algum rendimento.

A tarde tornou-se plúmbea por uns algodões celestiais vindo da serra. Comuniquei:

- Não seria pior irmos para casa? Não tarda chove e está muito frio.

Já entre paredes iniciámos a preparação da célebre consoada. Na horta a tardoz cortei algumas couves que trouxe para casa num braçado gigantesco.

- Ai tanta couve... Mas vem cá mais gente? - perguntou Isabel num sorriso maroto.

- Não, mas prefiro que sobre a que falte. E se sobrar vai para as galinhas... Aqui nada se desperdiça!

O curioso desta tsrde foi a postura de Joca... Estava distante, afectuoso, mas diferente! Assumi que fosse da emoção, mas em breve perceberia o porquê:

- Precisamos falar!

- Mau rapaz... que tom de voz grave é esse? Que se passa?

- Podemos ir para ao pé da lareira enquanta elas tratam da janta?

- Claro... Mas estás a deixar-me preocupado.

- Não te preocupes... é que é Natal e não sei o que gostas... e vai daí não te trouxe prenda nenhuma para te oferecer. Tenho para as miúdas e para a Isabel, mas tu...

- Oh homem... deixa-te disso! Não quero nada! Como vês não tenho televisão, computador, nem telefone fixo. E só tenho telemóvel porque posso precisar de ajuda quando ando por lá sozinho!

Depois apontei um velho aparelho:

- À noite oiço umas notícias naquele velho rádio e mais nada! Os livros que me mandas chegam!

- Pronto antes assim mas estava preocupado.

Num cagagézimo de segundo mudou a postura:

- E escrever,  hem? Quando começamos?

Ri.

- Estás a rir de quê?

Fui à gaveta e retirei o velho caderno e mostrei-lhe. João abriu-o devagar para logo exclamar:

- Uau que desenho mais bonito... Quem fez?

- Não imagino, mas isso que aí está escrito é a letra da minha avó Pureza. O desenho não sei se foi ela, mas desconfio que sim!

Continuou a folhear o vetusto caderno e parou no que eu escrevera. Leu devagar para logo perguntar:

- Falta o resto...

- Pois falta! - admiti - Necessito de inspiração.

- Puxa pelo bestunto, companheiro!

Mudámos de assunto até que lhe perguntei:

- E filhos, não queres?

A face mudou de tom e eu logo percebi que algo estava menos bem. Sem insistir mudei de conversa:

- Desculpa lá, dá-me aí esse tronco se fizeres favor. Está-se aqui bem, não está?

- Não posso ter filhos...

- Tens duas meninas - apressei a devolver.

- Um problema qualquer que eu tenho... nem com tratamentos...

- Tem calma, não fiques triste... não estás só como eu...

Joca deu-me outro abarço e continuámos a matar saudades de outros tempos.

Finalmente a ceia. Ou Consoada. Que eu havia muitos anos não fazia questão em comer diferente. Mesa posta mais perto do lume e iniciámos o jantar.

Até que de repente tocou o sino da aldeia:

- A tocar a rebate? - perguntou Isabel.

- Calculo que estarão a chamar os fiéis para a missa do Galo!

- Oh nunca fui a nenhuma...

- Mas podes ir hoje...

As meninas ficaram alvoraçadas:

- Podemos ir, podemos ir?

- Claro... mas só depois de comermos.

Fazia muito tempo que não estava com tante gente a jantar. E muito menos em casa. A refeição correu rápida e as meninas seguiram para a igreja. 

- Podes ir Joca...

- Eh pá tu sabes que nunca fui muito de alinhar nestes credos.

- Eu também não. Mas reconheço que muitas vezes são verdadeiros apoios psicológicos - assumi.

- Ai acredito! Mas vão elas e a gente fica aqui a arrumar a cozinha. 

- Boa ideia!

Era perto da meia-noite quando uma algazarra entrou na casa. As meninas vinham excitadas com a noite.

- Este é mesmo um Natal especial, pai! - disse Filipa abraçando o meu amigo.

De súbito um silêncio entrou na sala. Não tendo percebido acabei por perguntar:

- O que se passa?

Isabel aproximou-se de mim e de olhos rasos de lágrimas confessou:

- Foi a primeira vez que a Filipa o tratou como pai!

Nem comentei pois percebi que aquele momento seria apenas deles. Entretanto a esposa desaparecera da sala, regressando com alguns sacos que poisou no chão. Depois e como não havia árvore de Natal... apenas a jarra com o giz-barbeiro foi lá que encostou cada prenda sobre os sapatos.

- Joca, este embrulho é para a Filipa e esta é para a Sara.

Chegou a hora de abrir as prendas. A excitação ao rubro por parte das meninas mais novas. No sapato de Isabel um pequeno embrulho que esta abriu devagar quase temendo o que lá estaria. Finalmente abriu uma pequena caixa de veludo onde encontrou um anel com um brilhante. Levantou o olhar para o João e parecia perguntar algo:

- É um anel de noivado! Queres?

As lágrimas corriam pela face bonita de Isabel que só soube dizer:

- Sim, claro que sim! - e beijou o noivo!

Entretanto as meninas nem tinham dado pelo caso e só souberam mais tarde. Sara ria muito e perguntava na sua inocência:

- Vais ser o meu pai verdadeiro?

- Sim, se quiseres...

- Quero, quero muito!

Afastei-me por que achei aquilo um tanto lamechas e sendo eu quase um eremita percebi que me deveria afastar. Fui à cozinha e trouxe um moscatel velho para comemorarmos. Peguei em três copos e na botelha e quando cheguei, Joca parecia também chorar. Disse para comigo:

- Isto dava para uma estória de cordel...

João viu-me e quase correndo para mim trazia uma papel na mão. Confessou:

- O Natal fez o milagre...

- Ainda acreditas nisso?

- Agora mais do que nunca - e mostrando o papel, continuou - vou ser pai!

- Como?

- Esta é uma imagem da ecografia do meu José.

- Ups! - Exclamei espantado.

- Sim será José como tu.

Mas nem tive tempo de falar. As miúdas tinham vindo à rua buscar algo e regressaram gritando:

- Está a nevar, pai. Está a nevar!

Pronto, pensei eu, já tenho o meu Conto de Natal!

 

FIM

Giz-barbeiro! #2

Resposta a este desafio

Parte 1

Naquela véspera de Natal levantei-me de madrugada, por volta das cinco e meia! No fundo fiz o que faço há diversos anos, já que o gado não dá férias nem um mero fim de semana ao seu tratador!

Vesti a roupa perfumada de bedum e que sempre deixo em lugar fora de casa, peguei nas chaves dos cadeados do curral e entrei na madrugada ainda escura como bréu! Corria uma brisa gelada que me obrigou a aconchegar a roupa ao corpo ainda quente da cama.

Desta vez não iria com as ovelhas em busca de erva gelada, mas encheria as manjedouras com muito feno seco e algumas malgas de favas! E ficariam o dia todo no curral. Aproveitei para ordenhar algumas mães para mais tarde entregar o tarro repleto na tia Celsa que me faria como ninguém uma série de maravilhosos queijos!

O relógio da Matriz tocava oito badaladas no preciso momento que notei um anormal movimento de gente à frente do portão da minha austera casa. Não apressei o passo, mas naquela aparente família alguém me pareceu familiar. Os gestos das mãos, aquele jeito da cabeça... Aproximei-me lentamente.

- Joca?

O outro rodou meio círculo e vendo-me estendeu os braços num amplexo que juntaria muitos anos de afastamento físico.

- Eu mesmo. Dá cá um abraço... valente!

Abraçamo-nos durante muitos segundos até que nos separamos e olhamo-nos em silêncio. Fui eu que desboqueei:

- Estás na mesma João Carlos!

- Estás devidamente autorizado a tratar-me por Joca, como sempre o fizeste! - deu uma gargalhada daquelas que eu já tinha saudades!

- Que fizeste aos anos? Olha para mim e estas cãs...

- Isso é sinal de charme... Quanto aos meus anos... olha vivi-os.

Nova risota franca para finalmente rematar:

- Antes que eles me vivam a mim!

A assistir àquele espectáculo três caras femininas. Joca chegou-se a elas e juntou-as num abraço e comunicou-me:

- Estas meninas e tu são a minha única família.

Temendo dizer algo que não devia, acabei por as cumprimentar, iniciando pela mais velha:

- Viva como está, muito gosto em conhecê-la - e estendi a mão

Mas a senhora, como fosse minha irmã, chegou-se a mim e pespegou-me dois beijos na face, enquanto denunciava:

- Sou a Isabel e conheço-te sem nunca de ter visto. Tu tens sido um exemplo para o Jo... João que fala de ti como um irmão!

- Amabilidade sua...

Sem levar em conta a minha resposta apresentou-me as outras meninas, claramente filhas.

- Esta é Filipa de treze anos e aquela mais novita é a Sara de seis.

Baixei-me e cumprimentei:

- Olá meninas bem vindas à minha humilde casa.

Depois abri os braços e convidei:

- Vamos para dentro que aqui está muito frio!

Desbravei caminhos, portas e deixei que todos entrassem na casa.

- Desculpem esta minha postura minimalista, mas como estou sozinho...

Convidei então:

- Quem me quer ajudar a acender a lareira?

- Eu, eu, eu - responderam as meninas em uníssono!

- Então vamos buscar lenha...

E virando-me para Joca quase ordenei:

- E tu meu mariola, trás para aqui o teu carro. Abres os portões, enfia-lo aqui dentro e carregas as coisas para dentro de casa.

Joca:

- Ok chefe... quem sou eu...

Já não tinha recordação da casa com tanta gente. Num instante a minha lareira, daquelas enormes, foi acesa para logo se sentir o calor crepitante e desigual do fogo.

Mais uma vez desculpei-me:

- Como disse sou demasiado minimalista e como qualquer coisa. Daí parte das coisas se encontrarem fechadas naquele louceiro, mas podem usá-las à vontade. Provavelmente necessitam ser lavadas.

Isabel interveio:

- Não te preocupes... tudo se resolverá!

De súbito:

- Ai o que iremos comer hoje ao almoço? Almoçam e jantam cá certo?

- Claro companheiro. Para a consoada estamos preparados...

Ocorreu-me:

- Vocês gostam de feijão frade?

Sara perguntou:

- O que é?

Ups e agora? Que deveria responder? Passei a mão pela cabelo a ver se encontrava uma resposta. Depois devolvi:

- É um feijão muito pequeno, mas muito saboroso. Tenho a certeza que irás gostar... Anda comigo!

Todos me seguiram até à loja por detrás da casa. Aqui encontra-se uma velha arca de madeira meio repleta de feijão frade apanhado no Verão anterior. Peguei na malga e enchi um saco.

- Creio que chega! Vamos lá pô-lo em água. Depois vamos cozê-lo.

Entusiasmadas as crianças seguiram-me por todo o lado. Até à capoeira onde retirei alguns ovos que as miúdas adoraram pegar!

- Mãe, mãe ainda estão quentes!

Era uma da tarde quando o almoço foi servido: feijão frade, ovos cozidos e pimentos fritos em azeite e alho. Uma conversa alegre alastrou-se na enorme mesa de castanho. Até que questionei Joca:

- Mas tu nunca me disseste que eras casado e tinhas duas filhas?

- Porque não era e nem as tinha... - e riu-se com gosto.

Depois segurando a mão da mulher confessou:

- As meninas são filhas do primeiro casamento da Isabel!

Esta interveio:

- O meu primeiro marido faleceu de um acidente de viação há quatro anos.

- Lamento!

- Não lamentes nada, pá! - disse Joca a rir.

Para rematar:

- De outra forma como teria eu estas flores?

 

Parte 3

Giz-barbeiro!

Resposta a este desafio

Por esta altura do ano, invariavelmente, o Joca (sei como ele detesta este tratamento agora que somos velhos!!!) telefona-me. Entre muitos temas que falamos há um que é recorrente.

- Será este ano que leio um conto teu?

- Tu és um bocadinho teimoso, não?

- Serei? Talvez, mas nota que não teimo sozinho!

- Deixa-te disso! Sabes bem que não compro essa ideia!

Joca é jornalista e andámos juntos na escola durante diversos anos. Num desses períodos a professora de português, a Dona Elvira, uma santa e viúva senhora, lançou um concurso para as melhores composições sobre o Natal. O concurso acabou por ser alargado a toda a escola surgindo centenas de textos.

A minha composição também foi a concurso, mas porque foi o Joca a inscrevê-la sem a minha prévia autorização. O resultado foi divulgado no último dia de aulas antes das férias de Natal e o premiado vencedor… fui eu!

Desde esse dia o meu amigo passou a insistir para que escrevesse amiúde, coisa que jamais aconteceu, acima de tudo porque no final desse ano lectivo fui transferido para o interior do país.

O meu pai, operário de profissão, fora despedido por encerramento da fábrica e perante a escassez de dinheiro e trabalho teve a ideia de regressar à aldeia que o vira nascer. Fomos todos…

Se durante os primeiros meses a coisa pareceu complicada, quando o meu pai conseguiu trabalho na Quinta do Leal, tudo se tornou bem melhor!

Regressei à escola, agora já sem Joca para me atentar o juízo, mas depressa desisti de estudar. A minha paixão pelo gado levou-me a passear os animais pelas charnecas e encostas da quinta que aceitara meu pai!

Uma vida que ainda hoje sigo, ora sem prestar contas a ninguém! Na verdade, a enorme herdade, após a morte do velho dono, foi vendida por um punhado de notas e mais tarde definitivamente abandonada, porque as terras querem quem as trate com carinho e paixão.

Hoje a casa é um monte de escombros invadida por hera e alaga-cão, o pinhal, esse, ardeu há uns anos e ainda está por cortar, as oliveiras cresceram, entretanto, desmesuradamente e o resto… são frondosos silvados sem controlo!

O telefonema costumeiro foi há uns dias, mas hoje lembrei-me do João Carlos ou Joca, para os amigos e do seu insistente pedido: quando escreves um conto de Natal?

Andava pelas terras a pastorear uma centena de ovelhas, muitas delas acompanhadas das suas bíblicas crias, quando percebi por debaixo de um silvado, por onde havia fugido um animal, um tufo de giz-barbeiro! Fazia muito tempo que não via esta planta tão campestre!

A minha falecida avó Pureza é que costumava, por esta altura do ano, andar pelos campos em busca deste selvagem arbusto. Quase com meiguice cortava uns ramitos donde se destacavam as bagas sempre vermelhas e já em casa colocava-os numa jarra que ornamentavam o presépio.

Recordei esses Natais, vividos há tantos anos…

Nessa altura já havia abandonado a cidade e os estudos. Mas nunca a leitura. De vez em quando recebia uma encomenda de livros vindo de Lisboa. Sabia que era o Joca… que mos fazia chegar como prenda de Natal. Aquele mariola… era um bom amigo!

Peguei no giz-barbeiro e com o canivete cortei os pés que tinham mais bagas. Sorri porque naquele segundo me senti imensamente feliz! Sabe sempre bem recordar quem amámos, mesmo que já tenho feito a derradeira viagem.

Já tarde e depois de gado ordenhado e guardado coloquei num aparador o ramo silvestre, devidamente enjarrado. Fiquei a olhar aquele verde salpicado de vermelho redondo quais pérolas rubras, enquanto na lareira velha e negra ardia com fervor um cepo de mimosa.

Escrever um conto de Natal? Quem leria? O Joca, a namorada, o pai da namorada? Ou simplesmente ninguém.

Levantei-me da vetusta cadeira que já fora do meu avô Patrício e procurei na cristaleira, onde deixei as fotos mais antigas em molduras de pau-santo (quem diria?), umas folhas brancas. Encontrei um velho caderno de folhas fritas pelo tempo e humidade.

Não sei porquê aquele caderno pareceu-me familiar… Provavelmente já lhe pegara para retirar alguma folha em branco… Abriu-o e na primeira página o meu nome escrito com letras grandes e bem desenhadas.

- Esta é a letra da minha avó! Lembro-me bem dela!

Página dois! Li:

- Um conto de Natal.

Ri com gosto pela bizarra coincidência para na página seguinte dar conta de um desenho a lápis de cor! Era um ramo verde de giz-barbeiro repleto de bagas vermelhas tão bem desenhadas que quase pareciam verdadeiras.

O desenho tinha por baixo uma assinatura. Um mero rabisco, que ao invés do resto era quase indecifrável. Mas antes uma pequena frase que me deixou petrificado:

- O meu desenho de Natal!

E a mesma letra redonda e perceptível da minha avó Pureza.

Virei mais uma página que estava, desta vez, vazia e comecei então a escrever. O caderno pequeno foi ficando ocupado de letras, frases, parágrafos, no entanto não está completo pois eu ainda não escrevi nele o meu conto de Natal!

giz_barbeiro.jpg 

Parte 2

Os Felícios! #9

Resposta a este convite da Ana

Episódio 1

Episódio 2

Episódio 3

Episódio 4

Episódio 5

Episódio 6

Episódio 7

Episódio 8

O Natal aproximava-se à velocidade de uma bota de sete léguas como rezava a antiga estória de Perrault!  Por isso Mário Felício e Maria Felícia andavam numa fona desde o início do mês de Dezembro com óbvias referências ao que gostariam de ter no Natal próximo.

De vez em quando a menina mais nova escrevia no uotessape: Desculpem algum erro, mas este aparelho já deu o que tinha para dar... Tenho de ver se arranjo outro nem que seja em segunda mão (Maria Felícia sabia do pânico que a mãe tinha em comprar coisas em segunda mão!).

Mário Felício pelo seu lado era mais subtil e respondia assim à irmã: Não sejas idiota... esse telemóvel terá pr'aí um ano. Se tivesse uma consola para jogos com cinco anos... ainda terias razão.
Entretanto Felício e Felícia faziam-se de surdos e cegos não dando qualquer seguimento às conversas dos filhos.

Na verdade pagavam da mesma moeda que os infantes haviam entregue aos pais aquando da campanha da azeitona, de má memória.

O Natal chegou enfim com a costumada alegria da época. Alguns acepipes na mesa, uma garrafa de tinto daquele especial que Maria Felícia trouxera do supermercado onde havia semanas era caixeira e uma lampreia de ovos, o doce preferido do chefe do clã.

A família Felício não fugiu à ancestral tradição e logo pela manhã a troupe juntou-se de volta da árvore de Natal pouco iluminada. No chão ao redor sapatos velhos, mal cheirosos e uns embrulhos.

Mário foi o primeiro a pegar na prenda que encontrou sob o seu sapato rôto. No entanto achou estranho que não fosse uma caixa maior, mas imaginou alguma brincadeira familiar.

Rasgou o papel colorido e logo percebeu que não teria o que imaginara. Ao invés desembrulhou um belíssimo cachecol de malha do Clube Desportivo e Cultural de Alguidares de Baixo.

Uma fúria nasceu dentro de si justamente quando a mana viu a sua prenda e ria a bom rir.

Mas quando Maria foi abrir a sua e descobriu que em vez de um novo telemóvel (como quase pedira!) recebera um conjunto de costura, rapidamente perdeu o sorriso para enorme gáudio do irmão. 

No mesmo instante ambos olharam o casal de pais. Estes riam apenas.

Depois o Felício escreveu:

- Feliz Natal. Bonitas prendas, hem!

Logo veio a resposta. Mário primeiro:

- Tens cá uma graça!

Seguiu-se Maria:

- Sim, muito bonita a minha prenda. Tal qual a tua cara.

Entretanto Felícia abre a sua prenda e encontra um avental todo giraço!

Mas para o pai estaria guardado o melhor naco de fantasia. Aberto o embrulho o táxista encontra uma capa para o seu telemóvel.

- Boa malha! - escreve no uotessape.

Depois abre o involucro e constata que este tem o símbolo do clube que Felicio detesta.

Recua dois passos, deixa cair todo o corpo no velho sofá enquanto diz em tom furibundo:

- Que gentinha velhaca!

Jantar fora!

Resposta a este desafio

1 – O convite!

A igreja ampla e bem iluminada encheu-se naquele fim de tarde frio, para a costumada eucaristia vespertina. Por altura do Natal era frequente os fiéis aparecerem em maior número no templo. Um fenómeno estranho e ainda pouco entendido pelas autoridades eclesiásticas.

O culto decorreu com a exigência do momento e do local, mas terminada a comunhão e antes da bênção final, o padre Fernando aproximou-se do microfone que um dos acólitos colocara à sua frente. Com deferência e cuidado ajeitou a estola e comunicou:

- Esta terceira semana de Advento culminará com a bonita festa do Natal. Um momento de enorme entrega e partilha, quase sempre em família. Por isso pensei que seria, quiçá interessante, tomarmos a iniciativa nessa noite de Consoada deixarmos os nossos confortáveis lares e irmos jantar fora com os mais necessitados e que vivem permanentemente ao relento!

Um burburinho percorreu a assistência.

- Este convite é apenas para quem quiser e puder!

A plateia manteve-se agitada e houve mesmo quem abandonasse a igreja sem esperar pela bênção final. O padre Fernando calculou de antemão que tal pudesse acontecer, no entanto foi seguindo o seu raciocínio.

- A ideia será cada um de nós elaborar na sua casa refeições para duas ou mais pessoas, sendo que uma delas será para o próprio e a outra ou outras serão para oferecer aos sem-abrigo.

Novo pequeno tumulto invadiu a enorme sala.

- Mas desta vez não chamaremos aqui os sem-abrigo, pois seremos nós a ir aos locais onde pernoitam para jantar com eles. Cada um deverá levar o que achar melhor e jantaremos no seio da comunidade mais desfavorecida.

Serenamente continuou:

- Se somos todos filhos de Deus, como abandonamos estes irmãos na rua sem partilhar com eles um pouco do nosso jantar? Que cristãos seremos então? Onde encontramos Cristo nascido?

Os fiéis olhavam-se quase assustados com a iniciativa e questões do padre.

- Mais uma ideia estapafúrdia - diria mais tarde uma mulher para os seus míseros botões a caminho de casa em passo apressado e embrulhada num xaile negro de viúva até à alma, como escreveu Eugénio de Andrade.

Outros, ao invés, consideravam a iniciativa deveras interessante.

Todavia foram poucas as ovelhas, do imenso rebanho, que constituía aquela paróquia, que aceitaram o desafio e ajudaram o Padre Fernando a levar até à cidade a alegria de uma refeição quente e acima de tudo a partilha de vidas e respectivas estórias.

Chegada a noite de Consoada um grupo restrito de fiéis saiu da igreja em busca dos desemparados que se espalhavam pelos mais tenebrosos buracos da capital. No grupo alguns jovens e assíduos voluntários em trabalhos de campo. Conheciam bem a cidade e melhor ainda as pontes, viadutos e casas devolutas para onde se arrastavam demasiados sem-abrigos.

A maioria destes toxicodependentes, muitos alcoólicos, outros sem maleita definida a não ser a… solidão.

O padre Fernando era um jovem clérigo com ideias muito radicais sobre a forma como espalhar a fé. Dizia muitas vezes em conversas semiprivadas que a fé só se espalharia pelo exemplo e pelas obras, , seguindo a ideia de S. Tiago e não só com palavras. E era este sentido que ele queria colocar na sua iniciativa de Natal.

Ainda não era tarde, mas a noite gelada já descera à cidade. O trânsito fazia-se quase todo no sentido da saída da imensa urbe enquanto aquele grupo se dirigia no caminho inverso.

A certa altura num largo o carro da frente parou e fez sinal aos que o seguiam da comitiva que ficaria ali. Aquele seria um dos locais mais preenchidos de pobres e desvalidos.

Estacionaram os outros e espalharam-se pelas ruas quase desertas. Sob um viaduto encontraram homens e mulheres já deitados sobre nacos de mantas e cobertos por grossos pedaços de cartão tentando minimizar o frio da noite.

Uma fauna bizarra onde independentemente do sexo todos se misturavam sem pudor. Eles de barbas de muitas semanas, sujas e que escondiam profundas rugas dos anos e das intempéries da vida, olhares longínquos e frios. Elas de longuíssimos cabelos emaranhados e muito sujos, atados no cimo da cabeça por um cordel criando um novelo fétido.

Mas o mais comum em homens e mulheres era a quase ausência de dentes. Alguns perdidos pelas doenças e vícios, outros pelas contínuas zaragatas por um lugar melhor nalgum vão de varanda.

Todavia para o comum cidadão o pior estava no odor nauseabundo que estes pobres exalavam. Nem eles nem ninguém sabia há quanto tempo não tomavam banho. Mas não se importavam…

A equipa desceu ao inferno da cidade levando consigo muitas refeições. Um dos sem-abrigo vendo-os chegar e percebendo que havia comida aproximou-se e perguntou:

- É para mim, é para mim?

Alguém disse que sim, mas acrescentou:

- Vai haver muita comida, mas precisamos de um lugar onde nos possamos sentar.

Parecia um terramoto a movimentação dos que dormiam ao relento e, quase por milagre, apareceu uma longa mesa, bancos, caixas e até uma cadeira. Tudo para que todos se sentassem. Todavia um dos pobres disse:

- A cadeira é para o Pai Óscar!

As visitas não sabiam de quem se tratava para minutos depois vindo do fundo de uma manilha de esgoto e que por ali fora abandonada surgir um idoso. Dobrado sobre uma velha bengala o Pai Óscar, como todos o tratavam, caminhou devagar e sentou-se no lugar que lhe haviam reservado!

2 – O jantar

Ao lado do velho sentou-se o Padre Fernando que de uma forma cuidada foi ajudando a colocar todos os apetrechos para o jantar! Pratos, copos, talheres, guardanapos!

Para depois vir a comida que todos os desgraçados olhavam com gulodice e que se espalhou pela mesa. O velho ainda nada dissera desde que chegara e todos aguardavam as suas palavras. Inclusive o padre!

O idoso ergueu o braço devagar e foi gesticulando para que se sentassem e aquietassem. De seguida olhando para o padre sentado a seu lado disse numa voz rouca e quase sumida:

- Quero agradecer esta comida que vocês trouxeram e mais ainda perceber o porquê deste solidário gesto.

Os voluntários olharam-se temerosos a aguardar uma resposta do padre. Mas este fez que não entendeu a ideia e seguiu para uma breve oração que só alguns dos presentes seguiram. Finalmente a palavra mágica:

- Comamos!

Já conhecedor da natureza humana o jovem padre Fernando percebeu que o idoso sentado à cabeceira da longa mesa fora, algures no tempo, alguém com conhecimentos largos. A forma como falava, mesmo com alguma dificuldade e, acima de tudo, a serenidade que colocara nas palavras.

Contudo o mais curioso foi a maneira como aqueles seres humanos, pouco habituados a serem tratados como tal, se portavam à mesa. Não houve bravata por um naco de pão ou um pedaço de carne. Todos comeram devagar como se conhecessem há diversos anos.

De vez em quando chegava mais um necessitado, para o qual havia sempre mais um prato! A tristeza que muitos teriam naquela noite mágica para tanta gente fora substituída por uma alegria contagiante. E nem o odor nauseabundo que exalava dos pobres desgraçados fora suficiente para esmorecer a alegria da partilha.

A noite carregava-se de frio e muita humidade. Todavia naquele espaço, mesmo ao ar livre, ninguém sentia a intempérie da noite e a alegria era contagiante,

O Padre na sua serenidade eclesiástica olhava a mesa e percebeu que era aquilo que deveria ter feito, não obstante muitas vozes discordantes. Depois questionara-se de que serviria esta época se não fosse para partilhar o pouco que se tem com outros que têm menos?

O vinho que viera desaparecia a uma velocidade luminosa, muito por culpa dos alcoólicos presentes, mas outrossim de outros sedentos de iguarias.

Tudo evaporada qual éter! Queijos, azeitonas, pão, manteiga como entradas. Depois o bacalhau, o polvo, as couves, batatas tudo regado com bom azeite. Perú, borrego, lombo de porco e até umas pernas de frango eclipsaram-se num instante.

Por fim a fruta e os doces que tal como o restante repasto imolaram-se pela fome, num ápice!

Pai Óscar comeu pouco essencialmente porque o seu olhar perscrutava atentamente os seus amigos e muito mais os beneméritos.

Um verdadeiro ancião!

3 – Uma longa conversa

O jantar aproximava-se do fim e entre o padre e o chefe do clã dos despojados da vida o diálogo não passara de um mero como está a comida? ou está a gostar? ao que o idoso respondia com elogios curtos, mas assertivos confirmando a ideia primeira do clérigo.

Alguns convivas cantavam já com vozes bem desafinadas, canções sem nexo o que criava um ambiente alegre e salutar. Algumas mulheres ousaram dançar ao som das canções inventadas, mas foram logo paradas perante o olhar desaprovador do velho Óscar!

Atento a todos os acontecimentos o padre decidiu questionar o idoso sem receio de ser mal interpretado:

- Diga-me meu irmão como se chega a esta decadência? O que o atirou para a rua?

O interlocutor fez um gesto largo com ambos os braços como se tudo estivesse explicado nesse envolvimento. Mas o vigário não ficou esclarecido.

- O Mundo, a vida e acima de tudo as pessoas, especialmente as más!

Num segundo Fernando recordou-se de uma fase do Padre Américo e que dizia... “ não há rapazes maus!” e esteve para lhe devolver como resposta, mas preferiu perguntar:

- Há quanto anos anda nesta vida?

Ao longe tocou o sino da igreja talvez chamando os fiéis para o culto ou somente estaria a bater as horas. Naquele instante nada disso parecia importante.

O velho sem responder ergueu-se do seu patriarcal lugar e começou a caminhar devagar bem preso à vetusta e puída bengala. Depois olhou para trás e percebendo que o padre não o seguia chamou-o com a mão.

- Siga-me se fizer favor!

O outro alcançou-o e caminharam uns metros lado a lado. O idoso parou, ergueu a bengala e apontou para um buraco meio escondido entre dois velhos prédios. Naquele espaço estava uma enorme manilha abandonada havia muitos anos e da qual Óscar se apropriara. Dela fizera a sua casa e lentamente desceu o caminho de terra até chegar. Aqui bateu com a bengala na orla de cimento e de dentro veio um som surdo, como estivesse cheia de gente.

- É aqui que eu vivo faz agora muitos anos.

- Lamento sabê-lo, mas falta saber porquê neste buraco?

- Isso é uma estória longa e sem um final feliz…

- Tenho a noite toda!

O velho entrou remexeu em algumas coisas para de súbito apareceu uma luz mortiça oriunda de uma vela de cera. Por fim convidou:

- Se quer saber da minha vida é melhor sentar-se.

O padre vergou-se à vontade do idoso e penetrou no local lúgubre e mal-cheiroso. Sentou-se nem reparou em cima de quê e preparou-se para escutar o que o velo Óscar teria para contar.

- Sabe padre… há muito que perdi a fé!

- Em Deus ou nos homens?

- Sinceramente? Em ambos!

O idoso pegou no seu inseparável apoio e quase como se conversasse consigo mesmo desfiou:

- Era véspera de Natal naquele dia. Eu tinha trabalhado o dia inteiro para poder passar mais uns dias com os meus…

- Filhos? - interrompeu.

- E mulher, irmãs, cunhados, sobrinhos, sobrinhos-netos… enfim uma multidão.

- Uma alegria…

- Uma tristeza…

- Desculpe…

- Não tem mal… já digeri tudo isso… depois de tantos anos.

- Mas o que aconteceu?

- Nessa noite que vocês dizem que é Santa, a minha mulher na frente de todos abandonou-me. Trocou-me por outro. Humilhou-me...

- Uau… isso deve ter doído.

- Sim, na altura! Depois acabaram por partir também os filhos e eu fiquei só mais o meu trabalho. Procurei no álcool maneira de afogar a tristeza e foi de tal maneira que uma noite fiquei na rua… Quando acordei tremia de frio pois haviam-me surripiado as roupas e os sapatos.

- Que malvadez…

- Pois foi… mas um sem-abrigo mais novo que eu socorreu-me levando para um prédio devoluto. Aí deu-me de comer e de vestir… coisas velhas e rotas já se vê e por ali fiquei uns dias.

- Deus mostra-se nas pessoas mais humildes!

- Era bom tipo o Elizário… Nunca mais soube dele…

- Elizário… esse nome não me é estranho!

- Não deve ser o mesmo! Há anos que não sei nada dele!

- Eu conheci um com esse nome no hospital onde fui capelão! Era para lhe dar a Extrema-Unção, mas o homem era rijo e safou-se…

- Esse meu amigo era de uma ilha dos Açores…

- Das Flores?

- Daí mesmo!

- Só pode ser o que eu conheci! Que coincidência!

Lembrava-se bem do bom do açoriano e um sorriso aflorou aos lábios ao evocar a memória. Por fim continuou:

- E depois ficou por aqui?

- Sim fiquei… o meu trabalho de investigação no laboratório já não me dava qualquer gozo e preferi ajudar os que por aqui sofriam… com os meus conhecimentos…

- Nunca mais soube da sua família?

- Sinceramente Padre aquilo não era uma família… Daí dizer que perdi a fé! Aquilo era um antro de gente pérfida e má!

- Mas hoje é respeitado… bastou ver como todos o tratam.

A luz trémula do coto da vela ainda deixou ver uma espécie de sorriso sobre uma longa barba cinza. Para finalmente declarar.

- Sou o primeiro socorro deles! Para alguns sou um bruxo, outros um curandeiro, mas poucos ou nenhuns sabem que fui um médico…

- Que desperdício!

- Engana-se…

- Porque estou enganado?

- Porque sempre sonhei em ajudar os outros. Primeiro investiguei agora pratico. Mesmo que não tenha meios…

- Então Óscar não é o seu nome verdadeiro, pois não?

- Não senhor padre, não é?

- Então com se chama?

- Isso importa?

Realmente naquela noite não interessava, mas ainda assim…

- Não! Mas preferia chamar pelo seu nome verdadeiro… merece isso.

- Chamo-me Jesus! E nasci na Nazaré!