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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Confissão

Ela olhava-o com aquela ternura que o meio século de casamento obrigava. Os olhos dele mantinham-se fixos em lugar nenhum. Sem expressão, frios, longínquos.

Sentado num velho sofá tinha uma manta a aconchegar-lhe as pernas inertes. Os sucessivos AVC's haviam-no atirado para aquele marasmo e imobilidade.

Sentada à sua frente, a mulher passava a colher numa espécie de papa que lhe punha na boca e que ele engolia, provavelmente sem saber.

- O que eu não dava, homem, para ouvir de ti uma palavra. Uma só que fosse.

Continuava a passar a colher na papa e a depositá-la na boca.

- Tu que eras tão tagarela, tão falador... que me disseste tantas vezes que me amavas...

Mais uma colher.

- Não sei se me ouves ou não. Os médicos dizem que não. Estou a falar para ti como se estivesse a falar para mim, mas não sei se me escutas... Gostavam tanto de saber!

Limpou-lhe a boca suja com doçura e carinho..

- Ao fim de todos estes anos só agora sou capaz de te dizer que te amo. E também sei que gostarias de me ouvir dizer isto.

Baixou lentamente a cabeça para o prato de papa, que continuava a mexer.

Por isso não viu uma simples lágrima cair no regaço do marido.

Contos tontos - 40

Havia semanas que a seguia. À distância, não fosse ela desconfiar.

Aquele amor nascera assim... de repente como um corte de faca afiada. Não fora na epiderme, mas na alma.

Idolatrava-a em silêncio e no escuro do quarto, pela madrugada de insónia, imaginava a passear com ela de mãos dadas à beira-mar. Ou então em sonhos maravilhosos...

Todas as manhãs saía cedo correndo até a ver sair de casa. Seguia-a e protegia-a. Pensava ele.

Até que naquele dia, já na rua ela aproximou-se de um homem mais velho que parecia esperá-la, osculou-o com paixão e dando a mão seguiram o caminho.

Estacou miseravelmente triste, ficando a reviver o que sonhara e imaginara com ela nas últimas noites.

E agora... como apagaria para sempre os sonhos?

Saudades tuas!

Revi-te hoje… tão, tão ao longe.

Esse sorriso matreiro, inocente

Agora que pareço um monge…

Não esqueço esse riso quente.

 

Tenho saudades, muitas, tantas

De se sentir encostada a mim

Sei que te enrolas em mantas

Numa brincadeira sem fim.

 

Quanto tempo decorrerá ainda

Até te receber nos meus braços?

Sei que a minha vida não finda,

Até voltar a receber teus abraços.

 

És o meu incalculável tesouro

Que quero para sempre resguardar

Não há sarraceno nem mouro,

Que eu não te consiga guardar!

Amor ou amar-te?!

Sinto-te estreitada nos meus braços

Enquanto te balanço docemente

Reparo então nos teus traços

Pois o teu doce olhar não mente.

 

Brincamos juntos as brincadeiras

Que jamais pensei um dia brincar.

Estamos presos em vidas inteiras

Mas há ainda tanto para tocar.

 

Estendes-me os teus dias melosos

Numa oferta que não mereço.

São momentos singelos, luminosos

Em que simplesmente tropeço.

 

Bem vinda à minha vida!

Contos tontos!

Foram anos e anos a procurar a mulher. Sempre ocupada, indisponível, ausente...

Até que um dia ele cansou-se.

Procurou então noutras alcofas a forma de matar o desejo.

Até que ela descobriu.

Mas a partir desse dia passou a estar disponível e pronta para aceitar o marido.

Tarde demais!

Ele perdera para sempre o desejo daquela mulher.

E ela perdera a hipótese de ser finalmente amada.