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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - Um burro... velho - XIV

A casa do Manuel da Foice ficava no cimo de uma ladeira, afastada da estrada principal de terra batida uns duzentos metros. O acesso tinha gravado no chão duas linhas paralelas, denunciando os rodados frios e frequentes da carroça. Esta era puxada por um velho jerico de cor cinza e que já denunciava a sua idade pela maior teimosia e pela dificuldade que mostrava ao subir a aceguia que terminava no palheiro retemperador.

Havia muito que o camponês se apercebera que o animal já não era o mesmo e assim convenceu-se em levá-lo à feira de St. António e vende-lo por lá. Sempre haveria alguém disposto a comprar o animal.

No dia do mercado aparelhou o burro e pôs-se a caminho. A noite perdia o fulgor e dava direito à madrugada fria. As quase três léguas ainda levavam o seu tempo a percorrer, mas ainda assim o asno andava menos mal.

Os primeiros feirantes abriam as suas tendas quando o viajante chegou. À entrada encontrou o compadre Casimiro e logo este o desencantou:

-          Eh ti’ Manel, também cá está? – como se não acreditasse no que via – Venha daí beber um copito, que pago eu...

-          Não obrigado – respondeu o outro – preciso de me despachar.

E sem mais conversa deixou o padrinho da filha a falar sozinho. Embrenhou-se calmamente no meio dos homens do gado. Ouvia negociar, via dinheiro a passar de mão para mão e foi desta forma que naturalmente se libertou do seu velho animal. O comprador, cigano de tez e de negócio ainda queria negar-se mas lá foi dizendo que o animal era bonito, estava bem estimado e outros epítetos. Contudo não queria pagar o que o Manuel pedia. Mas descendo um e subindo o outro em breve selaram o acordo com um aperto de mãos. O aldeão recebeu o dinheiro e foi então em busca de novas sementes. Entretanto o Casimiro reapareceu desta vez mais bem acompanhado e logo que descobriu o outro, dirigiu-se-lhe:

-          Ora cá estamos outra vez. Venha daí beber um copo que pago eu – insistiu.

Enfadado com a insistência do amigo e para evitar mais demoras o Manuel da Foice lá aceitou o convite:

-          Pronto vá lá. Mas é só para não fazer desfeita.

Na banca dos vinhos e petiscos bebiam outros convivas, mas a maioria tinha mais que a conta. O nosso homem bebeu um copito, pagou dois ou três e a determinada altura achou por bem regressar ao convívio da feira. Conseguiu libertar-se do compadre com a desculpa que tinha de ir comprar uns avios para a Maria e regressou à balbúrdia dos vendedores e compradores.

Em breve encheu um saco de sementes mas depressa percebeu que não podia ir para casa a pé carregado com o saco. Um olhar viperino descobriu um asno ao longe. Aproximou-se como quem não quer a coisa e gostou do aspecto do asno. Castanho, bem alimentado, bonito, era bem capaz de servir os seus intuitos. O seu proprietário, reparando no interesse de Manuel, foi-se chegando, até que observou:

-          Então chefe, que acha do jumento? Belo animal, hem!

-          Sim, sim – consentiu o outro sem querer mostrar demasiado interesse. Jogos de negociante.

Adjectivos para aqui, qualidades para ali, lá foram conversando sem nunca falarem dinheiro. Até que o Manuel não resistiu e perguntou o preço do burro. A resposta veio serena a exemplo da conversa, mas o preço estava demasiado alto para aquilo que podia pagar. O efectivo que recebera da venda do seu animal não chegava para cobrir o preço deste. Ainda teria de pôr algum do que trouxera. Mas o negócio ainda estava longe de se fazer. Como era seu hábito, quando pretendia alguma coisa, Manuel abandonava o local, deixando no ar uma desculpa:

-          É muito caro! Não tenho dinheiro para isso.

Mal virou as costas ao vendedor demonstrando desinteresse, logo este o chamou:

-          Ó chefe, não se vá embora. Ainda fazemos negócio…

Mas o eventual comprador já não o ouvia. O abandono faria provavelmente baixar o preço. Percorreu calmamente o recinto da feira, mirando as diversas barracas, repletas de objectos reluzentes e apetecíveis.

Ao longe, duma colina sobranceira à feira, olhou o redil. Por entre homens e animais lá descobriu o burro que tanto lhe caíra no goto.

A tarde principiava a escurecer ajudada por umas nuvens plúmbeas, prevendo noite chuvosa. Manuel aproximou-se novamente do vendedor do burro duma forma que parecia distraída.

-          Oh freguês. Veja o burro. Olhe que ainda lhe tiro duas notas – tentava o vendedor.

Menos duas notas era bom preço mas não o suficiente.

-          No mínimo três – contrapôs o comprador.

O outro coçou os cabelos negros como carvão e lustrosos como cera que se adivinhavam debaixo duma boina. Fez contas e mais contas e até que disse:

-          Duas e meia, está bem?

Foi a vez do comprador coçar os poucos cabelos. Mas este foi mais rápido a decidir:

-          Negócio fechado. Eu fico com o burro.

Pagou, carregou o animal com a saca em cima da albarda que retirara ao outro e fez-se ao caminho para casa.

Já era bem de noite, quando arribou à aldeia. Doíam-lhe já as costas e o próprio animal mostrava também já algum cansaço. Admirou-se para um animal jovem. Do fundo da escuridão surgiu de repente o Zé Romão, que acabara de chegar da cidade, onde fora fazer uns exames médicos. Cumprimentaram-se mesmo à beira do carreiro que levava a casa de Manuel da Foice. Este largou a arreata do burro, enquanto estendia a mão ao amigo:

-          Então Manel, ‘inda agora?

-          Oh, deixe-me lá. Fui à feira vender o meu velho burro mas acabei por comprar este…

… Mas quando olhou apercebeu-se que o bicho não estava com ele. Só viu a silhueta do animal à porta do estábulo, já lá em cima.

-          Mas com o diacho! Como sabe o asno que vivo ali… Não querem lá ver? – refilou o aldeão.

Despediu-se à pressa do Romão e subiu a pequena vereda em passo estugado. A porta do palheiro estava fechada, mas ele abriu-a. O burro entrou então serenamente como se estivesse em casa.

2 comentários

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    José da Xã 26.03.2012

    O mais curioso nesta história é que foi verdadeira e eu tive o prazer de conhecer o Ti' Manel e o Zip-ZIp, que era o velho burro.
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