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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos tontos - 22

A notícia penetrou-lhe na alma tal qual um murro na boca do estômago. A dor ficara ali presa dentro de si sem hipótese de sair. Um tormento!

Em toda a sua já longa vida habituara-se a lidar com o imprevisível. E acatara serenamente tudo o que o destino, ou fosse lá o que fosse, lhe reservara. Tudo… menos aquele momento.

Aceitara que a mãe abandonasse o pai, trocando este por um qualquer artista plástico de qualidade duvidosa. Aceitara com condescendência que a mulher se tornasse alcoólica por viver ociosa. Aceitara que os filhos o deixassem só, fugindo certamente a uma mãe que não os soubera educar.

A sua vida resumira-se por isso ao dinheiro que ganhara e ao que com ele conseguira adquirir. Não tinha amigos verdadeiros, nem familiares próximos que o amparassem. Estava só. Mas aquela solidão não o magoou, pensou ele.

Uma singela lágrima tremeu nos olhos, teimando em correr pela cara bem escanhoada. Passou as costas da mão pela face e limpou o sal humano.

Tanta raiva contida, quantos desejos adiados, tantas palavras silenciadas… para nada! Restava a pergunta: valera a pena?

Nem pensou em responder.

Em passo lento entrou no escritório, onde prateleiras com milhares de livros que nunca lera, forravam as paredes. Em cima da secretária uma moldura que ele pegou e virando-a para si reparou nos seus três filhos ainda pequenos. Lembrou-se daquele dia na casa da praia com os descendentes e a mulher na cama a curar mais uma das muitas e usuais bebedeiras.

Sentou-se num velho “fauteil”, herança de um avô belga, encostou a cabeça ao braço e ficou ali estático a contorcer-se com aquela dor que se embrenhara na alma.

Algures na imensa casa tocou um relógio. Deixou que o tempo passasse lentamente e tentou não pensar. Pela primeira vez em muitos anos desligara o telemóvel. Queria estar em silêncio, a carpir somente a mágoa que o consumia.

Olhou então para o pequeno móvel que ladeava a poltrona herdada, onde um candeeiro de loiça irradiava uma luz quente e amarela.

Serenamente o homem abriu a porta do pequeno armário, meteu a mão dentro como se tivesse a certeza do que ia encontrar e finalmente retirou a pistola.

Contos tontos - 21

A noite havia sido tórrida. Entre ambos uma miríade de beijos, carícias e desejos desvendados. Finalmente cansados, foi ela a primeira a falar.

- E se ninguém conseguisse mentir? – Perguntou naquela voz melosa de mulher apaixonada.

Ele olhou-a de soslaio e percebeu que a pergunta tinha outra intenção que apenas uma mera resposta dele. Ainda assim arriscou:

- Não haveria Pai Natal. Nem Natal. Nem prendas, nem subsídios (ups… mas isso já não há!!!). Não haveria política, nem políticos. Nem votos, nem eleitores… - ele parecia momentaneamente perdido e imparável na resposta.

-… Não haveria traição, nem tristeza. Nem palavras ocas, nem promessas vãs. Nem sorrisos disfarçados, nem alegrias desmedidas.

Ela ergueu-se do seu conforto e mesmo desnudada depositou nos lábios do amante um beijo e uma nova questão:

- Acreditas que haja quem não minta?

Ele cruzou os braços por debaixo da cabeça e olhando o tecto alvo desabafou:

- Eu! Eu não minto. Posso eventualmente omitir mas não minto.

Ela insistiu:

- Mas se todos nós não conseguíssemos mentir? Apenas disséssemos a verdade?

Ele respirou fundo como estivesse a fazer um frete e devolveu:

- A vida era demasiado insossa para ser vivida. O que apimenta os dias é o risco de sermos levados a mentir.

- Mas ainda agora disseste que não mentias…

Apanhado na contradição esfarrapou uma má desculpa:

- Falava em termos da nossa sociedade, como está ora constituída…

- Sabes que mentir é feio?

- E dizer a verdade magoa...

Ela deitou-se na cama sedosa e foi a sua vez de fixar o tecto. Por fim insistiu num tom pouco amistoso:

- É preferível viver numa mentira permanente… só porque a verdade dói?

Ele calou-se. A conversa toldara-se num tema pouco simpático. A noite fora (quase) perfeita… Um jantar, uma dança breve, aqueles primeiros toques. Levantou-se então da cama, nu e dirigiu-se à casa de banho. Regressou com a escova de dentes enfiada na boca e a espuma a fugir pelos cantos e a sucessiva acção da escova a bailar. Após a passageira irritação ela olhou com ternura e vaidade, o corpo musculado e esbelto do amante, sorriu interiormente e pensou:

- A este homem jamais será revelada a verdade, porque há-se sempre julgar que lhe mentem! Ou será que não?