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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos tontos! - 8

O trânsito impedia que os carros andassem com fluídez. Parou no sinal vermelho. À sua frente, na passadeira, muita gente a atravessar a larga avenida. Entre a amálgama de pessoas reparou num homem que em passo decidido cruzava a estrada. Conheceu o seu passo, a postura...

Abriu a janela e chamou:

- João... João...

O homem parou, olhou ao redor e preparava-se para seguir quando ela apitou. Ele voltou para trás e espreitou para dentro do  carro.

- É comigo?

O sinal passara a verde. Ela ligou os 4 piscas e respondeu:

- Claro João... Não te lembras de mim?

- Desculpe mas deve ser engano...

- Impossível João não te lembrares de mim. Sou a Clara... Andámos juntos na escola... no Liceu...

O homem olhou para trás com receio dos carros que ultrapassavam a viatura imobilizada e respondeu:

- Lamento mas não a conheço.

Ela voltou ao ataque:

- Pergunta à tua irmã se não se lembra de mim?

Ele enfiou mais a cabeça dentro do carro e esclareceu:

- Minha senhora, lamento comunicar-lhe que sou filho único!

As últimas palavras foram ditas com tanta certeza que ela acabou por pedir desculpa e partir.

O homem atravessou finalmente a avenida e por fim ligou o telemóvel.

- Estou Alice? Nem imaginas quem vi agora? A Clara...

- Quem? A tua paixão de juventude?

- Essa mesmo.

- E que queria ela?

- Que eu me lembrasse dela...

- E lembraste-te?

- Não. Sou muito selectivo nas minhas recordações.

Contos tontos! - 7

Era uma daquelas tardes brandas que o Verão sabe oferecer. O sol acariciava o pópulo de forma serena.

Dois jovens namorados caminhavam devagar nos trilhos desenhados no imenso parque. De mãos entrelaçadas, falavam de trivialidades nada interessantes para o comum dos mortais mas essenciais para eles.

Procuravam um banco para se sentarem. Mas os que foram surgindo estavam todos ocupados! Aqui três idosos relembravam tempos passados. Mais à frente uma jovem universitária parecia estudar grossos compêndios. Do outro lado duas idosas tentavam dirimir um conflito entre duas amostras de cães que teimavam em se zangarem um com o outro..

E os jovens caminhavam.

Logo à frente diversas senhoras teciam nacos de algo enquanto desfiavam longas conversas. Num outro banco um sem abrigo dormia ao sabor da pacata tarde.

Finalmente o tão desejado banco. Sentaram-se os jovens e voltaram a entrelaçar-se um no outro. Mesmo ao lado outro casal, este já de longa e provecta idade, parecia também namorar.

A jovem foi a primeira a reparar. E chamou-o à atenção. Ambos riram à sucapa. Perguntou ela:

- Será que daqui a muitos, muitos anos também namoramos assim?

Resposta pronta:

- Claro! O nosso amor é eterno!

Ela sorriu, respondeu que sim mas simplesmente não acreditou!

Contos tontos! - 6

Pegou na chávena com a mão direita, entrelaçou o dedo indicador na asa mas foi com a mão esquerda que conseguiu levar a chávena à boca. Ainda assim tremia...

A doença de Parkinson tornara-se tão evidente que já não conseguia esconder. Assumiu por isso o mal como algo normal. Também a cabeça já dava sinais evidentes da doença.

Devagar bebeu o chá quente enquanto olhava para a paisagem que se abria à frente da sua janela. O dia morria lentamente. No horizonte as cores variavam entre o amarelo e o laranja coladas a um anil perfeito.

De dentro da casa ouviu alguém chamar pelo seu nome:

- Doutor Acácio...

Já sabia para o que era... Os medicamentos... Aqueles que o punham a dormir e o inibiam de olhar aquele horizonte.

- Doutor Acácio...

A voz feminina apareceu por detrás e ele nem se incomodou a olhar para ela. 

- Estão aqui os comprimidos para tomar. Vá, vamos lá!

Não se mexeu. A enfermeira deu a volta ao cadeirão e colocou-se defronte do idoso. Foi com a serenidade que a idade o permitia que o doente declarou:

- Durante dezenas de anos mantive esta casa de pé. Ninguém fazia nada sem me perguntar primeiro a minha opinião. Fiz fortuna sim mas nunca esbanjei um tostão.

Finalmente olhou fixamente para a jovem e terminou:

- E foram os meus filhos, que nunca fizeram nada na vida, contratá-la somente para me tapar a paisagem. Desvie-se... deixe-me ver o pôr-do-sol.

A enfermeira desviou-se, rodou nos calcanhares e ficou outrossim a mirar a paisagem.

Contos tontos! - 5

- Lembras-te quando namorámos as tardes tão saborosas que passámos?

Ele olhava para o portátil e parecendo distante disse:

- Isso foi há tanto tempo. Ainda te lembras?

- Se me lembro... Tenho tantas saudades desses dias... bons!

Ele recostou-se no grande cadeirão e erguendo os olhos do computador, perguntou:

- Gostarias de repetir?

Os olhos dela incharam-se de alegria e devolveu:

- Claro que sim... E tu não?

- Eu também. Mas para isso tens de largar os comprimidos que te estão a definhar.

Ela baixou os olhos repentinamente e iniciou uma torrente de lágrimas.

Ele não se enterneceu com o choro. Era sempre assim!

Quando parou, recomeçou como se nada tivesse passado.

- Lembras-te quando casámos as nossas noites de leituras...?

Ele olhou-a com rispidez e respondeu, seco:

- Lamento, mas já não me lembro!

 

Contos tontos! - 4

Ela olhou-o gulosa. Era uma mania, ela sabia, aquela tentação por homens mais velhos. Mas nunca evitava um olhar frontal.

No entanto este fora diferente... Muitos, quando ela os olhava assim de frente, fugiam com o olhar chegando mesmo a corar. Mas aquele...

Aceitara o olhar como se fosse a recompensa de alguma coisa que nem ele sabia. Mas ao mesmo tempo sentiu o peso do seu olhar adversário e foi a vez dela fugir ao confronto.

Na esplanada apenas eles os dois, em campos opostos!

Ela levantou-se serenamente e foi-se sentar na mesa dele, no lugar defronte. Ele, após a devolução do ataque visual, embrenhou-se no jornal.

- Boa tarde sou a Mónica!

Ele atirou-lhe novo olhar que ela temeu. Mas não desistiu:

- Porque me olha assim... dessa forma tão fria e distante!

Calmamente dobrou o jornal, levantou-se do lugar e antes de sair, perguntou :

- Sabe o que é o amor? Calculo que não!