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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - Amor Tropical - XLI

O corpo esbelto e bem torneado de Regina era o tema de todas as conversas no povo. Chegara havia semanas acompanhada do pai Bernardo, um filho da terra que partira para terras de Vera Cruz havia mais de trinta anos e durante todo esse tempo jamais comunicara com a aldeia que o vira nascer. Regressara finalmente acompanhada pela filha de pele morena, queimada pelo sol tropical e longos cabelos loiros, tal qual a seara de trigo, que tantas vezes em gaiato ajudara a ceifar.

A jovem, era agora alvo de falatório aguçado e viperino. As mulheres quase todas viúvas, mal casadas ou mal amadas, respingavam com azedume palavras ásperas com o intuito de magoar pai e filha:

- Uma desavergonhada! Uma tentação do Diabo!

- Doidivanas é o que é! Que descaramento! Vir para aqui assim… naqueles propósitos…

E o assim correspondia a saias muito curtas, evidenciando um par de pernas bem desenhadas e acobreadas. A jovem, porém, não temia os ditos. Sorria, apenas. Havia muito tempo que se habituara a ser o centro perfeito dos homens e o imperfeito das mulheres.

Regina adorava passear pelos campos, repletos de flores silvestres. Só. Saía de casa manhã cedo e explorava com natural emoção locais e referências doa quais o pai sempre lhe falara. Não temia ninguém e muito menos o povo sereno da aldeia, não obstante as venenosas observações de que era alvo.

Os jovens rapazes sonhavam romances arrebatadores e paixões quentes e impossíveis com a jovem estrangeira. Todos lhe queriam conquistar o coração. Havia mesmo quem já imaginasse coisas…

 Ora certa tarde de uma primavera luminosa o Alfredo entrou na taberna do Bilhas e anunciou com ar triunfante:

- Aquela já cá mora no "papo" do menino! - e batia com as mãos no peito inchado.

Os outros desconhecendo a quem se referia o galã, perguntaram:

- Aquela quem?

- A brasileira…

- A brasileira? Mas que é que lhe fizeste?

- Ainda nada! Mas não tarda nada ides ver…

No pensamento dos amigos passou a imagem quase proibida da jovem nua e ao alcance da mão.

- Não acredito! – Afirmou com relutância Jorge.

- Então não acredites! Isso é contigo.

- Mas conta lá o que é que aconteceu.

Uma dúzia de olhos, ávidos de relatos mais coloridos, convergiu a atenção para o que Alfredo iria dizer.

Apanhado na sua própria arrogância e mentira, o jovem rapaz começou por coçar a nuca numa preocupação evidente. Pigarreou e finalmente avançou:

- Uma destas tardes andava eu à caça, lá para os lados da Pia Estreita…

- … mas agora estamos no defeso, se a Venatória te apanha… - cortou o Felisberto.

- Eh pá cala-te, deixa lá o rapaz falar – zangaram-se os outros.

- Pronto, pronto, não digo mais nada. Continua Alfredo…

- Ora com estava a dizer eu andava lá para os lados da Pia, quando vi ao longe uma figura toda jeitosa - e desenhou no ar com as mãos as curvas de um corpo.

Um coro de assobios soou na tasca. Continuou:

- Aproximei-me devagar e encontrei a brasileira envolta em silvas, picando-se e rasgando as mãos, pernas e braços. Então cheguei ao pé dela e perguntei-lhe calmamente: quer que eu a desamarre desse enredo?

Todos o miravam em silêncio, aguardando a resposta que a jovem teria dado:

- … tremia como varas verdes, parecia que lhe metia medo…

Estas últimas palavras haviam sido proferidas pela própria Regina que entrara na taberna com à-vontade e escutara as últimas fanfarronices de Alfredo. Este, num estalo de dedos, transformou-se na cor da cal. O ar zombeteiro e marialva fora substituído por um agitar demasiado nervoso.

O suor escorria testa abaixo deixando antever a agitação que o invadia. Os amigos que o rodeavam perceberam rapidamente o estado de espírito do outro e inclementes atacaram:

- Olha lá Alfredo foi mesmo assim como diz a Regina? Tremias que nem um pudim em dia de boda?

- Nem pensar! Ela é que está a exagerar!

- Mas tu disseste que ela estava no “papo”! Ou fui eu que ouvi mal?

A atrapalhação da última pergunta fez com que Alfredo abandonasse o café bufando e praguejando. Os restantes mantiveram-se na loja, riram do jovem gabiru e aproveitaram para conversar com a brasileira, que no seu linguajar doce ia deitando algumas achas nos corações daqueles jovens repletos de ideias e paixões apenas sonhadas.

- Vocês são uma gracinha! Mas aquele pobre partiu triste…

- Deixe lá Regina. Ele é um gabarola muito conhecido na aldeia e arredores. Já ninguém vai na conversa dele! Mas conta histórias engraçadas e nós gostamos de o ouvir…

A jovem ficou com os homens na taberna, tornando-se um deles. Ria alto, contava piadas, ouvia com atenção as dos outros e bebia cerveja naturalmente.

Devagar a aldeia foi-se habituando à presença da brasileira. A simpatia que irradiava acabou por ser contagiante e finalmente o povo aceitou a jovem tal como era. Visitava os idosos fossem ou não da família, ajudando-os em algumas tarefas caseiras, apaziguando alguns corações mais revoltosos.

Desde os acontecimentos na taberna que Alfredo fugia da bonita brasileira. Temia que esta o envergonhasse uma vez mais. Assim que chegava do trabalho recolhia-se a casa, ajeitava a horta que crescia nas traseiras, dedilhava um velho banjo que herdara de um avô, suspirava… De manhã pegava na velha motorizada e partia bem cedo para a fábrica. Porém foi a jovem Regina que o apanhou desprevenido um sábado à saída de casa, quando aperaltado se dirigia não sabia bem aonde, só sabia que estava farto de estar em casa fechado:.

- Oi como está você?

O rapaz deu um salto, pensou voltar para trás mas ganhou coragem e respondeu ao cumprimento:

- Estou bem! E a menina?

- Tudo numa boa. Me diga uma coisa, porque me evita?

Ele merecia aquele castigo.

- Eu peço imensa desculpa. Sou um parvo…

- Não é nada. Você não me fez mal algum. Foi só a si…

- É, sim… claro! – Alfredo tremia. Sentia-se desfazer-se na frente daquela bonita mulher. Parecia a do calendário que o Fernando expunha no velho barracão. Aqueles olhos verdes, o cabelo longo, o corpo perfeito…

A jovem sorriu. Tinha perfeita consciência das sensações que causava. Mas aquele rapaz era ainda muito ingénuo, não obstante a gabarolice das suas palavras. Por isso pegou-lhe na mão, puxou-o para si e beijou-o ternamente. Alfredo nem queria acreditar. Um sonho tornado realidade. Uma paixão tanto tempo alimentada de sonhos e desejos… E respondeu como pode e sabia ao ósculo feminino.

- Gostou?

- Eu… eu … - gaguejou – não sei o que dizer. Desculpe.

Regina riu. Pegou-lhe na mão e puxou-o para si.

- Eu gosto de você! Me quer?

Alfredo derretia-se. Tremia, tremia como estivesse perante uma fera e não duma mulher. As palavras nem saíam. A garganta travava a fala. A emoção do momento era demasiada para o jovem coração. Finalmente recompôs-se e perguntou:

- Isso é a sério? Não está a mancar comigo?

Regina voltou a sorrir e respondeu:

- Pateta, claro que não. Eu não brinco com os sentimentos dos outros…

- Quero sim menina e muito…

- Não me trate por menina. O meu nome é Regina Novais.

Meses depois casavam na velha capela da aldeia com a pompa e circunstância que a cerimónia obrigava. Ao sair de braço dado com a noiva, Alfredo piscou o olho matreiro aos amigos que o aguardavam na rua.

- Afinal ele sempre a caçou… um sortudo! - comentou com os companheiros, quase em surdina, o Jorge.

Nesse instante alguém ouviu e respondeu também em surdina:

- Hum! Creio mais que foi ela que o caçou…

Os jovens olharam para trás e deram de caras com Bernardo, que sorria… feliz.

 

 

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Contos Breves - A estória de Zézita - XIX

No quarto atarracado e humilde, duas mulheres rodeavam Maria da Glória, que sofria atrozmente para parir. Uma, a Josefina era a parteira, mulher forte e experiente naqueles trabalhos de pôr no mundo nova gente, a outra era a Almerinda, mãe da parturiente. Ao lado, na sala rústica que servia também de cozinha João, marido da parturiente, guardava ao lume a panela de ferro com água. Sempre que ouvia a mulher gritar tragava de uma penada um cálice de aguardente como se ele apagasse os gritos e acalmasse o sofrimento.

Quando uma das mulheres saía do quarto em busca de água quente, o patrão perguntava:

-          Então, ainda falta muito?

-          Está quase, João, está quase! – Respondia invariavelmente.

E voltava a entrar no quarto. Novo grito e mais um cálice. Ao fim de um bom bocado a velha Josefina aflorou à porta para comunicar o nascimento da criança e encontrou o homem completamente bêbado ressonando em cima da velha mesa de madeira.

-          João acorda! – tentou a parteira sacudindo o novo pai. – Acorda João!

Estremunhado o bêbado levanta a cabeça e pergunta com a voz turvada de tanto alcool:

-          Então já nasceu?

-          Sim, é uma menina!

João ergueu-se de um salto mas a bebedeira era tamanha que caiu redondo no meio da sala. A outra regressou então ao quarto barafustando:

-          Raio de marido. Nem no nascimento da filha!

O dia seguinte amanheceu chuvoso. Uma chuva miudinha que entranhava na roupa até à pele. O homem levantou-se do chão frio e procurou logo a garrafa de aguardente. Mas esta encontrava-se vazia. Abriu a porta da rua e notando a chuva logo ralhou:

-          Que porcaria de tempo! Mais um dia sem fazer nenhum.

De súbito ouviu um choro de uma criança e logo se lembrou da filha que nascera na noite anterior. Dirigiu-se ao quarto e abriu a porta com cuidado. A mulher amamentava a filha num gesto pictórico que João jamais observara. Aproximou-se com delicadeza e perguntou baixinho:

-          É bonita a nossa menina, não é?

A mulher olhou-o com tristeza, mas respondeu:

-          É linda!

-          Que nome lhe vamos dar?

-          Pensei em Maria José como a tua falecida mãe.

-          Acho bem. Será Maria José.

João deixou a mulher de volta da criança e saiu, cruzando-se na rua com a sogra. Almerinda mal o cumprimentou, ainda aborrecida com a noite anterior em que ele bebera demais. O homem levava o sentido da taberna onde se preparava para comemorar o nascimento da filha, mas lembrou-se do olhar severo da velha mãe e arrepiou caminho e optou por ir para a horta onde ajeitou com perícia a terra molhada à volta das couves ainda tenras.

Os meses vieram trazer à realidade que Maria José não era normal. Desde logo se percebeu algum atraso no desenvolvimento. As idas com a criança ao hospital eram frequentes devido a um número anormal de ataques indefinidos. Após alguns exames os médicos concluíram que a menina tinham um desenvolvimento intelectual realmente abaixo do que seria normal e desejável. E assim seria para o resto da vida. Mas a mãe, desgostosa e inconformada com a sina, perguntou certa vez ao médico, por entre lágrimas e soluços:

-          Porque é que a minha filha é assim, senhor doutor?

O homem sentiu o olhar sincero e resignado daquela mulher e em vez de responder perguntou:

-          Diga-me lá uma coisa. O seu marido bebe muito?

-          Bebe sim, senhor doutor – respondeu.

-          E a senhora? Também bebe?

-          Eu senhor doutor? Eu não! Não gosto, nem de vinho, nem de aguardente. Pelo S. Martinho lá beberrico um dedito de jeropiga, mas é coisa pouca.

O homem passou a mão pela barba mesclada e finalmente confessou:

-          Pois creio que o problema seja mesmo do seu homem. O álcool em exagero cria situações destas. Não é caso único por estas bandas.

A mulher lembrava-se ainda daquela noite em que o marido chegara a casa perdido de bêbado na véspera do casamento de um sobrinho. Semanas depois descobria que estava grávida.

No regresso a casa, Maria da Glória fez uma promessa: enquanto a filha vivesse o marido jamais lhe tocaria, nem com um dedo.

Já era noite quando finalmente transpôs a porta de casa. Como de costume o João não estava. Sem se preocupar em demasia com a ausência, tratou de preparar a menina e adormeceu-a ao colo enquanto mamava no peito volumoso da mãe o leite já quente e temperado.

Deitou-se, por fim. Dormia já, quando sentiu o corpo pesado do homem. Trazia consigo o costumado e repelente bafo a vinho. O marido ajeitou-se na cama tentando chegar-se à esposa. Mas esta, duma forma brusca e determinada, repudiou-o com veemência. João estranhou a reacção pouco usual da mulher e aguardou por outra noite.

Só que essa noite jamais chegou. A esposa evitava o marido e arranjava todas as desculpas para a fuga. Certa vez, já varado com tanta abstinência, João virou-se para a companheira e perguntou-lhe:

-          Olha lá, que mal é que eu te fiz para já não me quereres?

-          Que mal me fizeste? Olha para a tua filha e descobre!

-          Descubro o quê?

A mulher suspirou um pouco, fechou os olhos e respondeu de forma repentina e brutal:

-          O senhor doutor disse-me que a Zézita ficou assim porque bebes demais. E como gostas mais do vinho do que de mim, ficas-te com ele. Em mim não tocas mais enquanto beberes.

O João ficou atónito e nem sabia o que dizer. Nessa noite o homem foi dormir para a barraca que erguera no chão da horta. A ideia de largar o vinho repugnava-o. Mas o pensamento de não passar uma noite com a mulher ainda se afigurava pior. Entretanto preferia aguardar até que passasse aquele desígnio infeliz da mulher.

Mas o gosto pelo vinho mandou mais na sua vida que o desejo da carne da esosa e passaram-se tempos sem que João tocasse nela. Por outro lado Zézita crescia e notava-se cada vez mais o evidente retardamento da menina. Se fisicamente parecia estar dentro do normal, intelectualmente era visível o seu atraso. Não conseguia acompanhar a escola e assim nem aprendeu a ler nem a escrever. Porém com a ajuda de uma mãe cada vez mais carinhosa foi aprendendo a lida da casa. Fazia devagar mas conseguia dar conta do recado. O pai olhava por vezes para a cachopa e começava a odiá-la. O sentimento de revolta fora substituído por uma vontade imensa de fazer desaparecer a rapariga.

Os anos passaram e os cabelos castanhos deram lugar a cãs e as mãos pujantes e enormes transformaram-se num conjunto de ossos, carregados de dores reumáticas. A barriga crescera com o álcool, assim como o peso que quase chegava à centena de quilos. Enfim João estava velho e doente. Zézita era há muito uma mulher feita. Falava pouco, mas fazia sempre sem azedume o que lhe pediam. A mãe envelhecera também e estava muito mais mirrada que o marido. As preocupações da filha e o permanente estado alcoólico do companheiro fizeram da mulher um palco perfeito de maleitas. Se não fosse o pequeno pé-de-meia que juntara aquando da venda de um pinhal provavelmente que a conta da loja seria muito maior. Aproximava-se a viajem final e o seu temor era a rapariga deficiente.

Quando morreu, nem pai nem filha carpiram a sua partida. Ela, porque só mais tarde percebeu, o pai porque havia muito que não conhecia a mulher. Quantos anos sem tocar na companheira… mas muito vinho bebido. Antes assim…

Os dias sucederam-se. Sentado à soleira da porta, João após várias achaques, mal falava. Deixara finalmente de beber, mas agora já era tarde. Maria da Glória havia muito tempo que partira. E a quem o saudava, respondia com algo imperceptível.

Certo dia, quando o primeiro sol de Primavera tendia a aquecer, João sentou-se como habitualmente no seu lugar preferido. A filha andava por casa, a arrumar tal como a falecida lhe ensinara. A rapariga saiu entretanto e trazia vestido uma velha bata, que fora da mãe. O pai olhou-a contra o sol e conseguiu vislumbrar as formas femininas da filha. E nesse mesmo instante, assaltou-lhe uma ideia.

Num passo lento e pesado recolheu a casa. De súbito Zézita viu-se sozinha na rua. Entrou apressada em casa onde encontrou o pai deitado na cama mal feita. Preocupada no seu pobre pensamento dirigiu-se ao antecessor:

-          Que tem pai?

Com evidente dificuldade João respondeu:

-          Nada. Senta-te aqui ao pé de mim!

A filha obedeceu com submissão. João pegou na mão da Zézita e ao fim de mais de 40 anos conseguiu finalmente vingar-se da mulher.