Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - A Lua, amiga e confidente - XXXVIII

Eugénia deitou-se. Desde as 6 da manhã que andava a pé, num afã costumado e cansativo. Nem as refeições eram momentaneamente repousantes. Havia sempre alguém da casa que clamava e exigia a sua presença.
Puxou o lençol para cima e tapou-se. Não era que tivesse frio, porém fora um hábito que adquirira desde criança. Pela janela escancarada viu a Lua, sua amiga e confidente, que do alto do firmamento negro ouvia em silêncio a mulher triste desabafar, quase em surdina:
- Um dia parto... Sem destino.
E após um longo silencio continuou:
- ... Parto para longe, onde ninguém me conheça...
A confissão quase ameaça era, havia muitos anos, repetidamente a mesma. Mas ia ficando, sempre. Primeiro porque os gaiatos exigiram cueiros e cuidados permanentes. Mais tarde pretendiam batas limpas e asseadas na escola e agora crescidos nem sabia porquê, tudo servia de razão para ficar mais um dia, uma semana, um mês. E este último somado a tantos outros entornavam-se em anos e anos e anos…
A noite cálida e serena não trouxe consigo nenhuma brisa. Durante todo o dia um sol tórrido quase queimara as entranhas de um povo corajosamente sofredor, carregando aos ombros fardos de canseiras e fomes.
De súbito pareceu ouvir um leve arranhar no lado de fora da  porta do quarto. Sabia de antemão quem era, mas fez que não ouviu. Sem resposta, insistiram em bater ao de leve. Mas Eugénia manteve-se em profundo silêncio aguardando que do outro lado a julgasse já a dormir. Porém a insistência manteve-se e ela não teve outro remédio senão responder:
- Entre!
A porta abriu-se devagar rangendo nas velhas dobradiças e da penumbra surgiu um homem já de provecta idade. O cabelo branco e ralo cobria-lhe parte da fronte num desalinho, vestia um pijama surrado, de mangas puídas e muito curto. Nos braços, até onde se podia ver, a pele flácida e enrugada caia-lhe como de pedaços de carne a mais. Aproximou-se de Eugénia e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Posso deitar-me aqui a teu lado?
A sopeira pode sentir então o odor nauseabundo que exalava do patrão. Uma estranha mistura de vinho, aguardente, alho e suor. Um pegulho que a enojava!
Mas nada disse. Deixou-se ficar, olhando a Lua, sua amiga e confidente. O homem, não obstante o silêncio da criada, teimou em invadir o leito. Mas desta vez apenas pretendia companhia:
- Desculpa, mas hoje não me apetece dormir sozinho... Não te importas que aqui fique?
E chegou o seu corpo à sopeira:
- Só assim, está bem?
Não estava bem, mas que podia ela fazer? A mulher teve pena daquele homem, sempre tivera. Desde o primeiro dia que ali entrara, havia muitos anos.
O fidalgo era descendente de uma rica família com origens no princípio da história do país. O seu avô, D. Acácio, tivera apenas três filhos: Clemência, Francisco e Amândio. A rapariga fora a mais velha dos irmãos; solteirona por convicção, gozara a vida até morrer. Imensos romances com diferentes epílogos, haviam partilhado a sua companhia contra a vontade férrea porém impotente de um pai austero, que acabou por considerar a filha como uma reles meretriz:
- Criei eu uma mulher para ser uma senhora e não uma galdéria pronta a encafuar-se em qualquer alcofa. Que pouca vergonha... Uma desgraça.
Quanto a Francisco, pai de D. Miguel, seguira as pisadas do antecessor e dedicara-se com êxito aos negócios agrícolas. Por sua vez, o mais novo perdera tempo e dinheiro em casinos e bordéis. Jamais casara e acabaria por perecer numa rixa, na feira de S. Sebastião por desavenças que envolveu saias e um marido ciumento.
Com a morte do pai Francisco, D. Miguel herdou não só o título nobiliário como a fortuna amealhada pela família. Da tia Clemência recebeu um belo palacete onde passou a viver e mais alguns nacos de terra fértil. De Amândio nada herdou. Tudo se evaporara...
Rico, solteiro e naturalmente bem parecido, num ápice o fidalgo passou a ser um candidato perfeito a marido, muito disputado pelas raparigas solteiras das redondezas. Porém só a Maria Violante conseguiria levá-lo ao altar. Conta-se que o sogro pagou uma grossa maquia para que Miguel aceitasse a jovem para sua esposa.
Realmente a noiva não era feia, bem pelo contrário. Mas exibia um estupor de um feitio que afastava qualquer candidato a marido. De ideias fixas, raramente dava o braço a torcer. Inflexível, arrogante e teimosa foi com incontida alegria que o pai viu partir a filha para a casa do genro. Confessaria um dia mais tarde numa roda restrita de velhos amigos:
- Foi o dinheiro mais bem gasto da minha vida! Desgraçado é do D. Miguel que tem de a aturar.
Todavia nos primeiros anos o casamento parecia quase perfeito. Foi o tempo de nascerem as crianças: três. Tal e qual o seu avô Acácio, dois rapazes e uma rapariga. Entretanto Maria Eugénia, ainda muito jovem, com pouco mais de doze anos, entrou ao serviço do casal, com a principal função de tomar conta dos gaiatos. Nessa altura já D. Miguel escapava sempre que podia de casa, enquanto a esposa se preocupava em caricaturar as vidas das vizinhas, em chás recheados de maledicência e coscuvilhice. A relação entre os cônjuges deteriorara-se abruptamente. O homem trocara uma postura alegre e acolhedora, pelo silêncio, rematado com uma tristeza permanente. Violante passou a usar e abusar da sua prepotência para desancar medonhas reprimendas na criadagem, como forma tristemente compensatória da sua vida medíocre.
Foi neste arruinado ambiente que Eugénia acabou por crescer. Também ela necessitava de carinho e algum consolo, principalmente após a morte recente da mãe. Mas no velho palacete teve de aprender à força a ser a mãe extremosa dos inocentes, a criada solícita da patroa, a governanta competente da casa e finalmente a amante fiel de D. Miguel...
Adormeceu por fim a mirar a Lua, sua amiga e confidente, sentindo nas costas o bafo quente e envinagrado do patrão. Quando acordou já a alvorada penetrava pela janela com se fosse uma carícia. Estranhamente sentiu ainda a seu lado o fidalgo. Estava tão sossegado que nem o ouvia respirar. Era a primeira vez em muitos anos que D. Miguel se deixava ficar na sua cama até de manhã.
Receosa do que poderia a patroa saber e pensar, resolveu então partir. A ameaça tantas vezes arremessada entre dentes transformara-se numa oportunidade única. Em silêncio, não fosse o fidalgo dar conta, amontoou os seus parcos pertences e encafuou-os numa cesta de verga comprada na feira de S.Bernardo. Arranjou-se, sempre em silêncio e saiu do quarto.
Fechou a porta devagar e desceu a frondosa escadaria. As tábuas velhas do soalho centenário rangiam à sua passagem, mas ninguém desconfiou da sua partida. Abriu a pesada porta e saiu. A manhã crescia por detrás das copas dos pinheiros que envolviam a imensa propriedade. Rodilha à cabeça lançou com perícia a cesta para o cimo, rodou-a um pouco para equilibrar e partiu. Depressa alcançou o caminho para a estação de comboios. Era ali que escolheria um novo destino para a sua vida. Nem sabia se para cima ou para baixo. Jamais saíra da aldeia. Punha o seu destino na Lua, sua amiga e confidente, que o Sol da manhã já não deixava antever mas que ela sabia que estava lá, colada ao firmamento, e ela que decidisse.
Entretanto no velho solar D. Miguel jazia naquela que fora durante muitos anos a cama de Maria Eugénia.
Em silêncio. Morto …

 

Também publicado aqui.

Contos Breves - Um burro... velho - XIV

A casa do Manuel da Foice ficava no cimo de uma ladeira, afastada da estrada principal de terra batida uns duzentos metros. O acesso tinha gravado no chão duas linhas paralelas, denunciando os rodados frios e frequentes da carroça. Esta era puxada por um velho jerico de cor cinza e que já denunciava a sua idade pela maior teimosia e pela dificuldade que mostrava ao subir a aceguia que terminava no palheiro retemperador.

Havia muito que o camponês se apercebera que o animal já não era o mesmo e assim convenceu-se em levá-lo à feira de St. António e vende-lo por lá. Sempre haveria alguém disposto a comprar o animal.

No dia do mercado aparelhou o burro e pôs-se a caminho. A noite perdia o fulgor e dava direito à madrugada fria. As quase três léguas ainda levavam o seu tempo a percorrer, mas ainda assim o asno andava menos mal.

Os primeiros feirantes abriam as suas tendas quando o viajante chegou. À entrada encontrou o compadre Casimiro e logo este o desencantou:

-          Eh ti’ Manel, também cá está? – como se não acreditasse no que via – Venha daí beber um copito, que pago eu...

-          Não obrigado – respondeu o outro – preciso de me despachar.

E sem mais conversa deixou o padrinho da filha a falar sozinho. Embrenhou-se calmamente no meio dos homens do gado. Ouvia negociar, via dinheiro a passar de mão para mão e foi desta forma que naturalmente se libertou do seu velho animal. O comprador, cigano de tez e de negócio ainda queria negar-se mas lá foi dizendo que o animal era bonito, estava bem estimado e outros epítetos. Contudo não queria pagar o que o Manuel pedia. Mas descendo um e subindo o outro em breve selaram o acordo com um aperto de mãos. O aldeão recebeu o dinheiro e foi então em busca de novas sementes. Entretanto o Casimiro reapareceu desta vez mais bem acompanhado e logo que descobriu o outro, dirigiu-se-lhe:

-          Ora cá estamos outra vez. Venha daí beber um copo que pago eu – insistiu.

Enfadado com a insistência do amigo e para evitar mais demoras o Manuel da Foice lá aceitou o convite:

-          Pronto vá lá. Mas é só para não fazer desfeita.

Na banca dos vinhos e petiscos bebiam outros convivas, mas a maioria tinha mais que a conta. O nosso homem bebeu um copito, pagou dois ou três e a determinada altura achou por bem regressar ao convívio da feira. Conseguiu libertar-se do compadre com a desculpa que tinha de ir comprar uns avios para a Maria e regressou à balbúrdia dos vendedores e compradores.

Em breve encheu um saco de sementes mas depressa percebeu que não podia ir para casa a pé carregado com o saco. Um olhar viperino descobriu um asno ao longe. Aproximou-se como quem não quer a coisa e gostou do aspecto do asno. Castanho, bem alimentado, bonito, era bem capaz de servir os seus intuitos. O seu proprietário, reparando no interesse de Manuel, foi-se chegando, até que observou:

-          Então chefe, que acha do jumento? Belo animal, hem!

-          Sim, sim – consentiu o outro sem querer mostrar demasiado interesse. Jogos de negociante.

Adjectivos para aqui, qualidades para ali, lá foram conversando sem nunca falarem dinheiro. Até que o Manuel não resistiu e perguntou o preço do burro. A resposta veio serena a exemplo da conversa, mas o preço estava demasiado alto para aquilo que podia pagar. O efectivo que recebera da venda do seu animal não chegava para cobrir o preço deste. Ainda teria de pôr algum do que trouxera. Mas o negócio ainda estava longe de se fazer. Como era seu hábito, quando pretendia alguma coisa, Manuel abandonava o local, deixando no ar uma desculpa:

-          É muito caro! Não tenho dinheiro para isso.

Mal virou as costas ao vendedor demonstrando desinteresse, logo este o chamou:

-          Ó chefe, não se vá embora. Ainda fazemos negócio…

Mas o eventual comprador já não o ouvia. O abandono faria provavelmente baixar o preço. Percorreu calmamente o recinto da feira, mirando as diversas barracas, repletas de objectos reluzentes e apetecíveis.

Ao longe, duma colina sobranceira à feira, olhou o redil. Por entre homens e animais lá descobriu o burro que tanto lhe caíra no goto.

A tarde principiava a escurecer ajudada por umas nuvens plúmbeas, prevendo noite chuvosa. Manuel aproximou-se novamente do vendedor do burro duma forma que parecia distraída.

-          Oh freguês. Veja o burro. Olhe que ainda lhe tiro duas notas – tentava o vendedor.

Menos duas notas era bom preço mas não o suficiente.

-          No mínimo três – contrapôs o comprador.

O outro coçou os cabelos negros como carvão e lustrosos como cera que se adivinhavam debaixo duma boina. Fez contas e mais contas e até que disse:

-          Duas e meia, está bem?

Foi a vez do comprador coçar os poucos cabelos. Mas este foi mais rápido a decidir:

-          Negócio fechado. Eu fico com o burro.

Pagou, carregou o animal com a saca em cima da albarda que retirara ao outro e fez-se ao caminho para casa.

Já era bem de noite, quando arribou à aldeia. Doíam-lhe já as costas e o próprio animal mostrava também já algum cansaço. Admirou-se para um animal jovem. Do fundo da escuridão surgiu de repente o Zé Romão, que acabara de chegar da cidade, onde fora fazer uns exames médicos. Cumprimentaram-se mesmo à beira do carreiro que levava a casa de Manuel da Foice. Este largou a arreata do burro, enquanto estendia a mão ao amigo:

-          Então Manel, ‘inda agora?

-          Oh, deixe-me lá. Fui à feira vender o meu velho burro mas acabei por comprar este…

… Mas quando olhou apercebeu-se que o bicho não estava com ele. Só viu a silhueta do animal à porta do estábulo, já lá em cima.

-          Mas com o diacho! Como sabe o asno que vivo ali… Não querem lá ver? – refilou o aldeão.

Despediu-se à pressa do Romão e subiu a pequena vereda em passo estugado. A porta do palheiro estava fechada, mas ele abriu-a. O burro entrou então serenamente como se estivesse em casa.

Água da minha aldeia

Entre pedras sem polimento,
a água vai-se escoando.
Tem o rio no pensamento,
nada a detém. Vai voando.

É um risco simples na terra,
sulco vergado a tanta passagem.
É um vale recortado na serra
no coração de uma pastagem.

Ao longe vistumbra o azul,
destino final de outras tantas.
Sai-lhe ao caminho um paul,
silêncio de vivas mantas.

Foge lesta e indomável
à impossível prisão.
Felina sente o intolerável
dos que lhe roubam o pão.

Mistura-se como quem foge
que não vê mais o que é
Quer regressar a casa inda hoje
chamou uma nuvem para até.

Do cimo tão perto do céu,
corre apressada mais o vento.
Tomba por fim como um véu,
no vale de amoras e alento.

Quero ser eu, água, apenas e só!

 

Também pode ser lido aqui.