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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - A Jaqueta Perdida - XIII

 

-       Então até amanhã! – Despede-se com um aceno, que beijo na rua é coisa de gente sem vergonha na cara.

-       Até amanhã. Agora vê se te embebedas por lá – roga a Armanda, triste pelo ósculo desejado mas ausente.

O homem toca a mula carregada e parte no sentido do horizonte onde o dia desponta silenciosamente trazendo afazeres e canseiras. A mulher fica à porta vendo o marido desaparecer na charneca por entre giestas e estevas.

Julião assobia uma moda. Dum velho marmeleiro que cresce à beira da estrada, corta uma pequena verdasca que vai pacientemente descascando com o seu fiel canivete. Atravessa a ribeira a vau e corta para a aldeia vizinha.

Nos alforges do animal há peixe fresco, que caminha num passo lento mas decidido. Prefere o carreiro de terra enlameada às pedras irregulares e falsas. Por baixo das ferraduras resvalam ainda assim pequenos cálculos.

À entrada da primeira povoação, retira da casaca uma velha gaita – em tempos usara um búzio - e sopra com saber. O som sai ruidoso e roufenho mas depressa se transforma numa melodia conhecida. Como por magia, as mulheres surgem de todos os lados e rodeiam o homem.

O bufarinheiro percorre durante todo o dia todas as aldeias das redondezas, mas quando cai a noite já nada sobra. Feliz pela boa e inesperada venda, Julião pára finalmente numa taberna para repousar. Lá dentro encontra o Zé da Noiva, o Chico Tropa e o Manuel Rola, todos grandes amigos dos caminhos e bebedeiras. Com eles inicia mais uma viagem de segredos que há muito deixaram de o ser e mentiras que ninguém acredita. E tudo acompanhado por vinho, muito vinho.

A lua já vai alta, quando os quatro amigos decidem abandonar a tasca. Todos carregam demasiado vinho no bucho e no espírito, mas Julião é o pior de todos. Irritante e aborrecido, pisa e repisa as mesmas palavras. Estas saem quase imperceptíveis, tamanha é a bebedeira. Nem a água da chuva que entretanto inicia a cair, consegue compor apropriadamente o ramalhete. Há quem, num laivo de lucidez instantânea, recuse voltar à taberna para aquilo que seria um último copo. Diz simplesmente:

-       Vou para casa... - e abandona o grupo em direcção ao lar.

Os outros olham-no espantados, riem-se e comentam em tom de chalaça:

-       Vai, vai senão a patroa ralha contigo.

Pairam no ar as risadas sonoras dos outros amigos. Finalmente cada um segue o exemplo do primeiro e regressam todos às suas moradas... Resta unicamente Julião...

A noite é agora iluminada por relâmpagos brilhantes. A trovoada rasga-se finalmente à água e esta precipita-se abundantemente. O vendedor procura a mula, aparelha-a e põe-se a caminho. Não obstante o álcool turvar-lhe o pensamento e as ideias, ainda reconhece o trilho de regresso. Na jaqueta do almocreve há bom dinheiro e aquele tenta resguardar a vestimenta da chuva intensa e joga-a para cima da mula e tapando-a com uma velha canastra. Mas o caminho é irregular por entre pedras e carrascos, obrigando a naturais solavancos em cima dos alforges.

Cai a jaqueta aos pés do dono.

O viajante pára. No solo há agora algo que ele quer agarrar. Mesmo com a bebedeira, tem a real noção do seu estado e sabe que se se dobrar para a frente perderá naturalmente o equilíbrio e cairá na terra molhada. Flecte então os joelhos, agacha-se e agarra finalmente a veste. Sacode-a da lama e não reconhecendo a sua própria roupa, saúda:

-       Ena que bela jaqueta. Vai para aqui...

E lança-a novamente para cima da albarda. Continua então o regresso a casa. Mais à frente a jaqueta cai uma vez mais. Ao mesmo tempo ilumina-se o céu com novo relâmpago. Julião nota que no chão há roupa caída. Nova ginástica para pegar a peça de vestuário.

-       Mais outra… - exclama. Alguém anda a perder a roupa por aí!

A água ensopa-lhe a restante vestimenta, mas mesmo assim não sente frio. Ainda está a mais de uma légua de casa e a chuva não parece querer dar tréguas.

-       Raios partam a maldita chuva! – Resmunga o homem.

A pequena casaca cai mais quatro vezes e em nenhuma delas o peixeiro reconhece a sua própria roupa.

Quando finalmente se contavam por sete as vezes que a já bem encharcada jaqueta caíra, Julião em tom de desabafo comenta para si mesmo ao pegar uma vez mais na roupa tombada no chão molhado:

-       Não quero mais roupa! Já encontrei seis. Esta fica aqui – e atirou para cima duma carrasqueira a pequena veste.

Quando chegou, já quase madrugada, recolheu o animal no estábulo, entrou em casa e dirigiu-se ao quarto e sem acordar a patroa, deitou-se. A cabeça rodopiava qual dança, prevalecendo ainda os efeitos etílicos.

Pela manhã Armanda acorda o marido com maus modos:

-       Então homem, onde está o dinheiro da venda de ontem? Preciso de ir à loja e não tenho um centavo.

Julião abre os olhos. A luz entra no quarto por uma pequena janela, suficiente para o incomodar. Dói-lhe a cabeça e da boca exala um odor pestilento último vestígio da bebedeira da véspera. Contudo consegue ainda responder:

-       Está na jaqueta em cima da albarda da mula.

-       Eu vou lá buscá-la... – Armanda dá meia volta e vai até ao palheiro onde repousa o quadrúpede. Aqui procura a casaca, mas após investigação e sem nada encontrar entra uma vez mais em casa gritando.

-       Mas tu julgas que eu sou parva? Não vi a casaca nem a carteira...

-       Pois bem à falta de uma hão-de estar lá sete, digo bem sete jaquetas. Seis que eu encontrei ontem no caminho mais a minha….

Armanda não sabe de há-de rir ou chorar. Entretanto barafusta:

-       Mas tu pensas que não tenho mais nada que fazer que aturar-te. Chega de brincadeiras e diz-me lá onde está a casaca mais a carteira!

Julião acorda finalmente. Num furioso e repentino gesto põe-se de pé. Veste as calças ainda molhadas e sujas da noite chuvosa anterior e corre ao palheiro. A mulher espera o marido de braços cruzados à soleira da porta da sua entrada, como que adivinhando o resultado.

Sai finalmente o homem esbracejando e barafustando.

-       Juro por Deus que encontrei seis casacas no chão enquanto vinha para cá.

Incrédula a mulher responde:

-       Mas se pensas que acredito nessa história estás muito enganado...

-       Ora porra... Armanda. Até me obrigas a falar mal. Foi tão verdade como estarmos aqui os dois... Até houve uma que atirei para cima de uns carrascos e nem a trouxe...

Num relance a companheira logo percebeu o porquê da falta da fatiota e logo foi atacando:

-       Ah ladrão que deitaste a tua própria jaqueta fora. Tal era a bebedeira que nem conhecias o que era teu. E sabes ao menos onde a deitaste?

O pobre do Julião nem queria acreditar. Seria verdade o que a mulher lhe dissera? No seu tenebroso pensamento o dia anterior acabava na casaca lançada fora. Temendo que alguém descobrisse a veste com a carteira recheada, logo se pôs a caminho até ao local onde calculou que estaria a roupa abandonada. A princípio não a viu e o seu frágil coração bateu mais depressa. Depois embrenhou-se mais no meio do mato e acabou por encontrar o que procurava. Arrancou-a aos ramos dos carrascos e apalpou-a. Sentiu o volume da bolsa do dinheiro e retirou-a. Abriu-a e contou o numerário. Estava todo.

Respirou finalmente de alívio e regressou a casa feliz, trauteando uma música alegre.

Armanda chora, amaldiçoando a sua sorte enquanto se aproxima o marido. Este agita no ar a bolsa recheada com ar de triunfo e consegue finalmente que os lábios da mulher se abram num sorriso aliviado e feliz.

Contos Breves - A Penitência - XII

 

Amadeu despertou. O dever de acordar a tempo e horas não o deixava dormir em paz. Ergueu-se silenciosamente, vestiu-se e saiu do minúsculo quarto que compartilhava com mais três irmãos. Na lareira da cozinha ardia ainda molemente um borralho. O rapaz buscou na dispensa escura a salgadeira e cortou um naco de presunto já ressequido. Duma velha arca, herança de uma avó que nunca conhecera, retirou meia broa dura de várias semanas.

Sem ruído que acordasse o pai viúvo ou os mais jovens irmãos entrou na penumbra da noite. Esta, surgia ainda branda após um dia de intenso calor. No ar bulia uma leve brisa que acariciava docemente as copas das árvores. A lua colada ao firmamento, alva e brilhante, parecia feliz por ter a quem iluminar.

O nocturno viajante iniciou a sua marcha acordando o ladrar de alguns cães vadios. No relógio da centenária igreja soaram duas estridentes badaladas que ecoaram na noite silenciosa. Aguardavam-lhe no mínimo perto de quatro horas de caminhada, antes de chegar à Quinta Grande e não havia claramente tempo a perder. Conhecia bem o caminho, mesmo que fosse por entre carrascos e penedos, medronheiros ou silvados, fosse de dia ou de noite. Todas as semanas fazia aquela longa caminhada. O retorno era ao sábado pela véspera numa carroça puxada por dois cavalos que o patrão simpaticamente disponibilizava para os criados que viviam longe da quinta. O carreiro subia e descia por entre pequenos montes e vales, atapetado de pedras irregulares, aconchegadas com terra vermelha e barrenta.

Após duas horas de passo seguro e regular o jovem aproximou-se de um local mal afamado donde se contavam histórias mirabolantes e inverosímeis. A acrescentar aos estranhos relatos havia uma velha oliveira, rasgada ao meio pelo peso da idade, que se situava à entrada duma fazenda e à qual davam o bizarro nome de “Oliveira da Bruxa”. O rapaz jamais crera em tais contos fantásticos. Achava que era cisma dos mais velhos. No entanto naquele local fervilhava um ambiente soturno e triste que Amadeu respeitava. Nessa mesma noite, com a ajuda do luar forte de Agosto, o jovem olhou a oliveira ao longe e julgou perceber que perto desta se vislumbrava um vulto. Mas logo afastou essa ideia pois não acreditou que àquela hora da madrugada ali se encontrasse alguém. Todavia ao passar mais perto da árvore, uma voz chamou-o:

-       Boa noite Amadeu!

O moço estacou. O coração batia agora a um ritmo acelerado. Engoliu em seco, respirou fundo antes de responder à saudação:

-       Boa… boa-noite…

A figura estava agora na frente do rapaz e assim ele pode ver com exactidão que se tratava de uma mulher ainda nova, talvez ligeiramente mais velha que ele próprio. Trajava de negro e envolvia a cabeça num xaile que deixava ainda assim destapado um belo rosto branco. Os olhos negros eram penetrantes e brilhavam à luz de uma Lua radiosa. Amadeu lembrava-se daquela figura num pequeno povoado a poucos quilómetros da sua aldeia mas nunca lhe dirigira a palavra.

Parecendo adivinhar os pensamentos do rapaz a estranha mulher perguntou:

-       Conheces-me, não conheces? - e ao acenar afirmativo do jovem continuou, - e sabes o que eu sou?

O jovem não sabia mas calculava. Mesmo assim respondeu:

-       Não, não sei.

-       Sou aquilo que na aldeia chamam erradamente uma bruxa. Contudo não faço mal a ninguém. Apenas sou a voz de alguém que está acima de nós. Crê que não te quero mal. Tu és um bom moço e o teu coração é puro. E é por isso que aqui estou pois tens uma penitência a cumprir.

-       Uma penitência? – Perguntou agora visivelmente assustado.

-       Sim uma penitência. Se a cumprires como deve ser terás uma vida longa e serás abençoado. Se não a cumprires serás amaldiçoado e teu futuro será um inferno. – E após uma pausa, perguntou:

-       Então que dizes?

-       E que tenho eu de fazer? – Questionou novamente o viajante sem saber muito bem o que consistiria a tal prova.

-       Só terás de me carregar às tuas costas até minha casa. E depois não dizeres a ninguém quem eu sou. Se me denunciares a quem quer que seja eu saberei e a penitência ficará quebrada.

-       Mas é um grande desvio do meu caminho. Eu vou para a Quinta Grande trabalhar e tenho de lá estar cedo – tentou ainda desculpar-se.

-       E tu julgas que eu não sei. Entretanto se formos já ainda chegas à Quinta a tempo. Terás apenas de correr um pouco.

Enquanto falava, a bruxa torneou o rapaz e num salto ficou às costas deste. Os braços dela envolveram-lhe o pescoço e as pernas atracaram-se na anca do jovem. Este sentia agora o bafo quente da mulher junto à sua face. Dela exalava um cheiro doce a ervas que o rapaz decididamente não apreciava. Amadeu nem queria acreditar no que lhe acabava de acontecer. O bom senso que geralmente o animava uma vez mais o ajudou na decisão. E sem mais demora pôs-se a caminho com a invulgar carga.

A juventude dos dezassete anos dava ao moço a força e genica suficiente para carregar aquele inusitado fardo. O seu pensamento saltitava agora entre o atraso que aquele involuntário desvio iria trazer e a humilhação que passaria se alguém o visse naquela figura. Quando se aproximou do conjunto de pequenas casas onde a sua companheira de jornada vivia, esta sussurrou-lhe ao ouvido:

-       Pára Amadeu. Eu fico aqui.

Da mesma forma ligeira como subiu às costas do penitente, desceu.

-       Pronto. A tua penitência está cumprida. Agora cala-te e não digas a ninguém quem eu sou. Podes ir, então.

O jovem nem se despediu. Virou costas e correu, correu sem parar, até avistar os primeiros casarões da Quinta Grande. O dia começava a clarear quando chegou ofegante junto do patrão. Mal conseguia falar e assim foi o patrão que perguntou:

-       Então rapaz, que te aconteceu para chegares aqui nesse estado? Parece que fugiste de um bicho…

Num esforço Amadeu mentiu:

-       Desculpe senhor Manuel Pedro, atrasei-me.

Mas o patrão, homem velho e sabido e conhecedor da alma humana logo desconfiou da resposta e rematou:

-       Vai então dar de beber aos bezerros e quando acabares, aparece lá em casa que quero falar contigo.

-       Sim senhor, – acatou o moço já mais refeito.

Já o sol dominava o céu azul raiando canícula, quando o jovem se apresentou uma vez mais ao patrão enrodilhando nervosamente uma boina.

-       Aqui estou senhor.

Manuel Pedro estava sentado numa velha cadeira, no pátio que se abria à frente da porta principal. Nas pernas uns livros grandes e amarelos serviam de apoio a algumas folhas onde o homem assentava alguns números. Assim que Amadeu se apresentou, poisou calmamente o lápis e retirando os óculos que o ajudavam a ver melhor as contas, perguntou:

-       Então diz-me lá rapaz, o que te aconteceu esta manhã?

O moço temeu o pior e mentiu novamente:

-       Nada senhor. Não aconteceu nada. Apenas me atrasei. Só isso.

-       Passaste pela “Oliveira da Bruxa”? – Perguntou de chofre o patrão.

Amadeu assustou-se com a intenção da questão, mas aparentando relativa serenidade, respondeu:

-       Claro, como sempre. É por aí o caminho mais curto…

-       E não vista a bruxa?

Desta vez não podia mentir. Calou-se então. Esperou que o silêncio profundo servisse de resposta. E não se enganou:

-       Pois já calculava... – observou o patrão – e então cumpriste a penitência?

-       Como é que o senhor sabe? – Questionou espantado o rapaz. Mas logo percebeu que com aquela pergunta confirmara a desconfiança do amo.

-       Porque em tempos também me aconteceu o mesmo. Tinha eu mais ou menos a tua idade. Era uma mulher jovem e bonita vestida de negro e obrigou-me a carregá-la às costas até casa.

-       Mas como pode ser possível. Esta é tão nova que podia ser sua filha. Como pode ser a mesma pessoa?

-       Pois é. Esse é um mistério que ainda ninguém desvendou. Todavia não te esqueças que ela é uma bruxa com poderes fabulosos... – e percebendo o silêncio comprometedor de Amadeu, concluiu:

-       E claro, não se pode dizer o nome dela.

-       Pois não… – suspirou aliviado.

O jovem voltou a passar pelo mesmo local muitas vezes mas jamais foi abordado