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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - Um Jantar Especial - X

 

No sopé da serra uma aldeia espraia-se pelos campos verdes. Uma ribeira atravessa o casario numa corrente doce. O vento que vem da encosta, outrora vestida de verde escuro, já não traz o perfume dos pinheiros. Um fogo arrebatador transformou a ladeira numa cor carvão.

No povoado a maioria dos aldeões vive daquilo que a terra bem tratada lhes dá. Outros buscam diferentes formas de rendimento, trabalhando nalguma fábrica ou emigrando para a capital. Havia ainda quem procurasse fortuna num país estrangeiro.

Francisco Zenóbio fora um desses homens que não se habituando à dura vida do campo, decidiu arrumar a mala e partir para Lisboa. Permaneceu na grande cidade durante vinte anos. Mas também aqui não foi feliz. Casou e enviuvou durante esse tempo. E por isso decidiu regressar à terra que o vira nascer.

As diversas profissões que tivera na cidade faziam dele um homem com muitos conhecimentos e preponderante. Fosse electricidade ou água, qualquer coisa ele abraçava sem receio e sempre pronto a ajudar quem dele necessitasse. Mas ao fim do dia era habitual ver o viúvo na taberna do Luís até tarde. Quando saía, geralmente nunca vinha só. O vinho fazia-lhe tanta companhia que ambos tomavam conta por inteiro da estrada.

Até que um dia o Zenóbio voltou a apaixonar-se. Foi na loja do Gabriel que a viu pela primeira vez. Vestia uma bata de sopeira, mas mesmo assim as formas esbeltas ressaltavam da roupa. Era ainda nova a rapariga.

-       Quem é? – Perguntou ao Gabriel.

-       É a Clara, filha do Zé Padeiro. Trabalha na casa do senhor doutor – respondeu o outro.

Francisco depressa usou dos seus conhecimentos para chegar à fala com a Clara. E pouco tempo depois casava-se com a criada numa boda discreta. Todavia esta sabia do gosto do marido pelo vinho e obrigou-o a prometer que deixaria de beber o que ele fez sem relutância. Contudo, como de uma amante se tratasse, Francisco visitava a taberna às escondidas da mulher. Mas o estado em que chegava a casa denunciava a sua promessa. Às primeiras vezes Clara foi condescendente e nada disse. Só quando o marido começou a chegar todos os dias em perfeito estado de embriaguez, é que a mulher resolveu assumir uma posição mais firme de forma a evitar mais discussões.

-       Ou paras já com essas visitas à taberna ou então eu regresso a casa de meu pai. Não casei para aturar um bêbado.

O homem ficou fulo. Odiava que a mulher o tratasse como um alcoólico. Contudo temeu que as ameaças passassem à prática e durante uns tempos evitou o caminho da taberna do Luís. Havia alguns companheiros que já brincavam com a situação:

-       Então Chico queres que eu vá pedir autorização à tua patroa para vires beber um copito? – E riam-se...

O visado ria-se, mas com pouca vontade. Passado pouco tempo nova escapadela até à taberna fez com que a jovem esposa pensasse em agir com mais inteligência, de forma a evitar uma vida de desassossego e martírio. Decididamente Clara era uma mulher resoluta e resolveu pregar uma partida ao marido. Assim, escolheu o dia do seu aniversário para cumprir o que tinha em mente.

Chegado o dia dos anos de Zenóbio, a esposa preparou um pitéu deveras especial. Quando o homem já estava à mesa, disse-lhe:

-       Hoje vais comer uma coisa catita e que me ensinaram na casa onde servi. Só as pessoas ricas é que sabem apreciar esta comida.

-       Ó mulher traz-me então isso, que eu tenho uma destas fomes! – acrescentou enquanto esfregava as mãos de contentamento.

Então Clara retirou duma panela fumegante duas conchas de sopa. Mas, antes de entregar a sopa ao marido, despejou para dentro do caldo um copo de vinho branco, previamente azedado.

Quando Francisco engoliu a primeira colher, não disse nada. Mas depois comentou:

-       Eh, raio, esta sopa sabe mal... – e após uma pausa – sabe a vinagre.

-       A vinagre? Olha que as pessoas ricas comem-na sempre assim. E garanto-te que não pus nada de estranho na sopa.

Francisco contrariado, lá continuou a comer, mas notava-se-lhe na cara uma insatisfação total com o que estava a saborear. Depois veio o conduto, que era um saborosíssimo galo assado no velho forno de lenha. Novamente sem que o marido visse, Clara retirou o galo de um tacho diferente daquele que servira para si própria. Apresentou o prato ao marido que, desconfiado olhava-o com desdém. A mulher, vendo o marido assim inactivo perante o assado, perguntou-lhe:

-       Então home’? Não comes?

-       Não sei – respondeu de mau modo, o marido.

-       Olha que o galo está muito bom. Não tem nada de mal. Foi feito com muito carinho para este teu dia tão especial.

Vencido, mas não convencido, Francisco levou a primeira garfada à boca. Mastigou devagar, saboreando bem a comida. Momentos depois, o homem cuspia para o prato o que metera na boca.

-       Arre, qu’isto não se pode comer. Só sabe a vinho.

-       A vinho? Tu estás maluco! Então eu iria pôr alguma vez vinho na comida? Só se fosse para estragar. Sabes do que é isso? É do muito vinho que bebes e agora a comida só te sabe a isso.

Zenóbio não acreditou e riu-se:

-       Essa mulher também é bem caçada! Agora queres tu dizer que a comida só me sabe a vinho pelo que eu bebo? ‘Tás tonta cachopa!

Mas Clara não desistiu e respondeu-lhe:

-       Então hás-de perguntar à ti’Belmira o que é que aconteceu ao seu home’! E aqui nas redondezas há muitos casos assim...

Francisco escutava a mulher. Já lhe tinha chegado aos ouvidos uma conversa daquele teor, mas julgara que não passava de uma laracha. Entretanto, distraidamente, metera outra garfada à boca, mas logo voltou a cuspir.

Pegou então no copo que se encontrava cheio de vinho quando se lembrou do que a mulher acabara de dizer. Olhou para esta e enquanto Clara saboreava uma bela perna do galo, o marido olhava a comida gulosamente. Então poisou o copo e disse:

-       Clara, a partir de hoje não bebo mais vinho.

A mulher riu-se disfarçadamente e continuou a comer, enquanto o homem a via devorar com gosto a carne por ela preparada. E ele cheio de fome…

Hoje quando alguém aparece lá em casa a comer Francisco vai buscar à adega o seu melhor vinho que continuava a fazer das suas belas uvas, mas não bebe. Quando lhe perguntam porquê, apenas responde:

-        Já bebi a minha parte do “meu melhor legume”.