Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - O “Quatro-Vinténs” - IX

-         Ei Tenório, chega aqui depressa, se puderes!

O destinatário do chamamento passava no carreiro estreito ladeado por paredes de pedra e tufos de carrascos e medronheiros, e ao ouvir o seu nome acorreu lesto e desembaraçado. Saltou o pequeno portal e foi ao encontro de quem clamara pela sua presença.

-         Diga lá ti’ Brilhante – acudiu numa expressão alegre como era habitual.

-         Preciso que me vás buscar aquela chiba ali à ribeira – e apontou para o fundo do declive - Fugiu para lá, nem sei como. Está farta de berrar e eu não posso deixar o rebanho aqui sozinho. Fazes-me esse grande favor?

-         É pra já!

Desceu sem qualquer temor a encosta íngreme até ao ribeiro, que corria veloz com a força das chuvas invernosas. Corajoso e destemido entrou no leito todo vestido, agarrou a cabra pela coleira de cabedal que envolvia o pescoço, onde um chocalho bramia um som metálico e bem característico. Com força puxou o animal para si, arrastando-o depois para terra. Assim que o bicho se viu em chão duro, escalou com pujança a encosta e foi juntar-se ao resto do rebanho que pastava serenamente. Tenório saiu da água gelada com maior dificuldade do que calculara, mas não o reconheceu.

-         Já está! Foi fácil!

O pastor levou então a mão ao bolso e retirou de lá umas moedas que entregou ao rapaz:

-         Toma é para ti!

O outro recebeu o dinheiro e feliz agradeceu com sinceridade:

-         Bem-haja.

Era amplamente sabido o exemplo de Tenório Gouveia, mais conhecido pelo “Quatro-vinténs”. A cegueira que este demonstrava pelo vil metal era tão doentia, que muitos se aproveitavam da sua fraca cabeça, desfecho evidente de uma meningite mal curada, para angariar serviços por um parco número de moedas.

O único que defendia Tenório era o seu único irmão Bernardo, que tentava em vão introduzir alguma sensatez naquele cérebro claramente deficitário. Mas a sua luta não se cingia ao irmão. Perante o rude povo aldeão tentava semear a ideia que o rapazola era muito útil, afável e muito esperto. E tanto vincava aquelas ideias, que um ano conseguiu mesmo que aceitassem nomear o mano como festeiro no evento que se realizaria por altura das cerejas.

Chegada a véspera da romaria lá surgiu o nosso homem pronto para aquilo que fosse necessário. “Quatro-vinténs” fazia um pouco de tudo: carregava os postes para as bandeiras, levava os estrados para fazer o palco para a banda, subia às araucárias donde cortava largas folhas com as quais cobriam o recinto da festa. Bastava pedir qualquer coisa e lá ia o Tenório a correr disposto a dar conta do recado. O ambiente compunha-se. Na aldeia as pequenas bandeiras multicolores espalhavam-se como um vírus pelas ruas estreitas dando um ar muito festivo ao povoado.

Aproximou-se o grande dia. Bernardo comprou uma camisa ao irmão, para ele a estrear no dia da procissão. O fato emprestar-lhe-ia um seu. O pior seria com os sapatos que Tenório de todo não apreciava.

As raparigas solteiras, ultimavam as fogaças, tentando requintá-las com os melhores acepipes. As que tinham o coração preso, esmeravam-se ainda mais, pois sabiam de antemão que os futuros fariam o possível para adquirir o tabuleiro da sua amada. E como tudo era a leilão, havia quem pagasse uma pequena fortuna para ficar senhor dos petiscos, que o coração, esse, já fora conquistado.

Mas no povo havia sempre quem nunca pretendesse fazer parte da comissão de festas, propondo-se unicamente como grande senhor da verdade e crítico corrosivo dos trabalhos que decorriam pelo povo. Era o caso do Eurico Mendes, para quem tudo estava mal feito, deficientemente organizado e incorrectamente preparado. Geralmente o desprezo a que o pópulo o votava era evidente e justamente avalizado.

-         Um destes dias vou aos fagotes do Mendes. Aquele pulha, que não merece outro nome, nunca fez nada cá pelo povo, e está sempre com a faca espetada. Ai dou-lhe, dou-lhe – ameaçou certo dia o responsável mor pelo acontecimento, já cansado de tanto sarcasmo e contestação.

-         Eh pá, aguenta aí. Deixa-oem paz. Eleé parvo mas já ninguém lhe liga. É um pobre diabo… - apaziguou outro, sabedor do espírito “esturrado” do juiz da festa.

-         Eu digo-te se é pobre. Ele que diga mais alguma e vai ver o que lhe acontece. Leva tamanha cachaporrada que lhe fica de emenda.

Porém o Mendes continuava na sua cruzada contra os festejos. Azar! O mestre das comemorações ouviu-o e sem nada dizer enfiou-lhe dois valentes sopapos, que deixaram o outro sem reacção.

-         Se voltas a dizer mal da festa, dou-te com um alferce que te racho ao meio. Tens a mania que és esperto mas eu dou-te que fazer…

O antagonista nem tugiu nem mugiu. Retirou-se da taberna onde tudo acontecera e dirigiu-se para casa em passo lesto. Prometeu a si próprio não aparecer até acabarem as festividades. Dedicar-se-ia exclusivamente ao amanho da terra e à guarda de meia dúzia de cabras. Só a Hermínia iria à missa no Domingo da procissão. Mas acordou consigo mesmo vingança futura.

Entretanto Tenório continuava na sua imensa labuta, tentando chegar a todo o lado. Nada o atemorizava e enfrentava todos os desafios com o mesmo à-vontade com que fosse fazer a coisa mais singela ou corriqueira. Faltava-lhe o normal bom-senso para ter consciência do perigo e denotava dificuldades para destrinçar o bem do mal.

Na sexta-feira, primeiro dia de arraial, os foguetes saltaram das mãos do entendido dando assim alarido e alegria ao povo. Com a noite chegaram os forasteiros enquanto a banda filarmónica testava os primeiros acordes.

As sardinhas, os couratos e as entremeadas davam cheiro e sabor ao recinto, quando a banda iniciou finalmente a tocar. O som espalhava-se por toda a aldeia ajudada pela encosta íngreme. De quando em vez ribombava, nos céus negros da noite entretanto caída, com natural estrondo, mais um foguete.

No recinto Tenório estava de serviço às mesas. Fazia a encomenda para a grelha e servia as pessoas. Porém as contas eram os companheiros que as faziam. Um grupo barulhento de jovens ia entretanto atazanando o pobre festeiro:

-         Ouve lá! Queres? E mostravam-lhe uma moeda.

Os olhos abriram-se-lhe então numa alegria evidente:

-         Quero, quero! – e estendia a mão, qual pedinte em dia de feira.

Mas os outros velhacos e malandros escondiam num ápice o dinheiro para grande desanimo de Tenório. Este reagia como uma criança, baixando a cabeça triste e acabrunhado. Os outros aproveitavam-se da situação para larachar com o rapaz:

-         Então “Quatro-vinténs” hoje não ganhas nada? Pobre de ti… Tadinho…

E riam sonoramente.

Batiam as sete da manhã no campanário da centenária igreja quando estoirou pelo vale o primeiro foguete anunciando a alvorada. Os cães ladraram com violência. Durante uma hora ninguém descansou com o foguetório consecutivo e barulhento. Era Domingo, dia de missa e procissão. Os santos padroeiros sairiam à rua e as moças solteiras arcariam com esforço os pesados cestos por elas preparados. Bernardo acordou cedo o irmão e após um banho anormalmente grande deu-lhe a camisa nova que ele vestiu com alegria e vaidade. Aperaltou-se como podia deixando no entanto a gravata à banda. Lá surgiu o irmão que o ajeitou com verdadeiro carinho fraterno.

Depois deu dois passos atrás e mirou-o de alto a baixo, dando então um assobio de concordância com o que via:

-         Estás um senhor! As raparigas esta noite não te vão largar. Ainda por cima vais carregar com o andor de Santo António que é o santo casamenteiro. Não tarde estás casado – animava o mano.

Um sonho que Tenório um dia lhe confidenciara:

-         Eu gostava de ter uma namorada. E casar…

Era meio-dia. Principiara a missa solene. O padre compenetrado na sua divina missão, seguiu todos os preceitos até que deu início à procissão. Tenório excitado acorreu para junto do andor do santo de Lisboa e aguardou. Atiraram-lhe para as mãos a opa vermelha que ele vestiu imitando os companheiros.

Finalmente alguém ordenou:

-         ‘Bora Quatro-vinténs, pega aí do teu lado. Mas devagar…

O rapaz, solenemente meteu as mãos por baixo e ergueu com facilidade o andor. Colocou-o em cima do ombro direito, previamente atapetado com uma pequena almofada e logo sentiu o peso.

A procissão saiu à rua. O rapaz não resistiu a uma quase gargalhada, quando no adro da igreja, à frente de todos percebeu o irmão, que dissimuladamente cerrou o punho num gesto amigo e de apoio. Devagar e solenemente seguindo os da frente, as figuras santas deslizavam num suave bailado. A fanfarra tocava, os foguetes estalavam no firmamento azul, os cães continuavam a ladrar, os peregrinos oravam numa fé abnegada. Das varandas pequenas, trabalhadas a ferro fundido, pendiam bonitas colchas multicolores, arrancadas à cânfora das enormes arcas que as guardavam apenas para se mostrarem naquele momento. A maioria do povo acompanhava a procissão, mas havia quem aguardasse pela passagem dos santos devotos. No largo da feira o mesmo grupo de rapazolas foliões e gozadores da noite anterior esperavam a procissão. Quando Tenório passou junto deles e conhecendo-os sorriu-lhes na sua natural inocência. Mas estes, abrilhantados por um espírito de malvadez e sabendo da cegueira de “Quatro-vinténs” pelo terrível metal, atiraram para a frente do rapaz uma boa moeda.

-         Toma, é para ti.

O dinheiro caiu mesmo à frente de Tenório rodopiando devagar na calçada. Este jamais se lembrou onde estava e o que carregava. Largou o estrado e baixou-se de supetão para agarrar o erário.

Foi a confusão total! Desequilibrado, o andor tombou para a frente e o santo escorregou do seu lugar. Um alarido do povo acompanhante fez o moço olhar para trás. O que viu foi somente a figura castanha de Santo António com um menino ao colo dirigir-se no seu sentido como se o quisesse agarrar numa queda imparável. Naquele instante porém, apenas perguntou inconsciente da sua fraqueza e acima de tudo das palavras:

-         Ah também viste a moeda?

Para logo responder:

-         Mas apanhei-a eu primeiro!