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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - A Dúvida de José Lucas - VIII


Poucos anos após o nascimento de José Lucas, logo se percebeu que a criança não era como os restantes irmãos. Fisicamente perfeito, contudo facilmente se descobria que o rapaz tinha notáveis dificuldades em falar. Mas acima de tudo evidenciava pouca capacidade de concentração e de raciocínio. O pai, agricultor de profissão, empenhou-se para levar o miúdo aos melhores médicos da capital, donde regressou com a resposta de que apenas o tempo e o convívio com outras pessoas faria melhorar o filho deficiente, mas jamais ficaria como os demais irmãos.

O tempo da escola chegou e com ele maiores foram as dificuldades demonstradas pelo catraio. A professora Odete até o ajudava sempre que podia, mas mesmo assim era patente o custo de aprendizagem. José acabou por abandonar a escola meia dúzia de anos mais tarde e ainda assim pouco mais sabia do que escrever – e mal – o seu próprio nome. Quanto a contas os resultados eram evidentemente piores. Conhecia os números, mas demorava uma eternidade para fazer uma simples conta.

Logo que deixou a escola, foi trabalhar na lavoura. De boa compleição física, rapidamente se tornou um elemento fundamental no ganha pão familiar. De tudo fazia e a todos ajudava, fosse a que horas fosse, sábado ou domingo, simples feriado ou dia santo. Nas sortes ficou isento do serviço militar, para desgosto do próprio, que adorava fardas. Era vê-lo embasbacado quando a banda passava pelas ruas da aldeia em dia de procissão. Com o decorrer do tempo a fala acabou quase por normalizar, denotando apenas embaraço no raciocínio. Confiava, por isso, em demasia nos outros mas sabia reconhecer quando era alvo de alguma chacota e demonstrava facilmente o seu desagrado.

Porém, José era já um homem feito quando aconteceu algo que jamais alguém conseguira prever. Ora, certo dia, o rapaz abordou o seu amigo Inácio ”o canhoto” e confessou-lhe na sua voz meio fanhosa:

-       Inácio, ontem vi-a...

-       Viste quem? – perguntou o outro intrigado.

-       A que vive ali... - e com um gesto apontou a casa.

-       Quem?

-       A menina...

-       A Genoveva? Mas o que é que aconteceu? – retorquiu preocupado.

-       Vi-a...

-       Vista-a e depois?

-       É bonita!

-       Pois é. Mas o que é que se passa?... – de súbito Inácio entendeu o amigo. Não obstante a sua natural deficiência José era acima de tudo um homem. E claro embeiçara-se pela extravagante rapariga.

O que ele não sabia era que Genoveva era uma moça demasiado conhecedora da vida. Contava-se até, que em tempos fugira para Lisboa atrás de um amor. Por lá andou três meses e quando regressou, não vinha a mesma. Mas a rapariga, bonita como era, continuava a destroçar os corações dos rapazes das aldeias ao redor. Mal sonhava ela que o seu vizinho, fora também picado pela paixão. Serenamente José foi-se aproximando da rapariga. Esta ao contrário do que seria de prever foi dando troco aos sinais de Lucas. E por isso, foi com grande espanto que um dia o rapaz chegou perto do pai e da mãe e comunicou que iria casar. Incrédulos os pais perguntaram com quem. Ao nome de Genoveva, o pai não se conteve:

-       Grande cabra! Andou por aí com uns e com outros e agora quer enganar o pobre do meu filho.

Mas José não ouvia o pai e andava feliz. Trabalhava agora mais do que nunca para fazer face às futuras despesas conforme opinião da noiva, que mantinha, todavia, uma vida mais calma, sem deixar escapar uma aventura sempre que surgia a oportunidade. O que importava é que o futuro marido não desconfiasse.

O Inverno estava quase terminado quando o casal deu o nó. Os pais do noivo foram à igreja, mas não à boda, para grande tristeza do jovem marido. Alguns amigos avisaram o rapaz para ter cuidado com a fogosa mulher, mas aquele respondia sempre com as mesmas e invariáveis palavras.

-       Ela gosta de mim!

Passou algum tempo. José notou que Genoveva estava mais gorda, mas nunca perguntou a razão. O mês de Maio estava no fim e as cerejas principiavam a inundar as casas, quando durante a noite a mulher acordou o marido que dormia a seu lado:

-       Zé, ó Zé... Acorda homem...

-       Hum... Que foi? – perguntou estremunhado.

-       Zé vai buscar a minha mãe, depressa...

-       Mas que foi que aconteceu? – Insistiu aflito o rapaz.

-       Deixa-te de perguntas e faz o que te peço. Vá anda, depressa – ordenou a mulher.

E lá foi o homem buscar a sogra. Esta quando chegou e se apercebeu do estado da filha logo gritou ao genro:

-       Homem, vai a casa da ti’Arminda e diz-lhe para vir depressa.

Novamente correu o José em busca da tal senhora. Para a sua pobre cabeça esta movimentação nocturna não tinha explicação. Até que se fez dia José não voltou a casa. Só regressou quando viu a sogra sair acompanhada pela comadre. Quando, finalmente entrou no lar foi ao quarto e para seu espanto na cama encontrou mais alguém. Ao lado de Genoveva dormia uma criança ainda rubra.

-       Mas... mas o que é isto? – gaguejando e apontado para o inocente.

-       Isto é o nosso filho... – respondeu a mulher.

-       Filho?... Eu tenho um filho... – e de súbito como se acordasse, renovou - Eu tenho um filho.

Saiu de casa em passo apressado em direcção da taberna. Aí chegado, gritou a plenos pulmões.

-       Eu tenho um filho!

Alguns homens abordaram logo o José e duma forma célere cumprimentaram-no. Outros, porém, ficaram a olhar entre si. Finalmente o Inácio que também estava presente, levantou-se e passando um braço à volta dos ombros do amigo disse-lhe:

-       Ó Zé, anda cá comigo, que eu tenho de te explicar umas coisas.

-       Que coisas? – receou o outro.

-       Sabes que as mulheres e as vacas são parecidas?

-       Em quê?

-       Demoram nove meses para parir uma cria.

-       Então e depois?

-       Depois é que, se casaste em princípios de Março não podes ser pai em finais de Maio. Esse filho não é teu!

-       Não é meu?

-       Não?

-       Então de quem é?

-       Não sei. Pergunta à tua mulher...

O José tinha dificuldades em pensar como devia ser e só ao fim de alguns dias, naturalmente acicatado pelo amigo Inácio, decidiu pôr em pratos limpos a dúvida da paternidade do filho. Perante a mulher, que na altura amamentava o novo rebento, questionou:

-       Andam por aí a dizer que o filho não é meu? Dizem que só passaram três meses desde que casámos.

A mulher assustou-se com a pergunta, mas rapidamente se recompôs e respondeu assim, contando pelos dedos:

-       Ora vamos lá contar. Casámos em Março, não é verdade? – Lucas respondeu com um aceno – Ora Março, macagarço e o mês de Março são três, Abril, magail e o mês de Abril são seis, Maio, macagaio e o mês de Maio são nove.

Acrescenta então José Lucas feliz e descansado, à laia de conclusão:

-       Então, sempre o filho é nosso...